Cremesp na Mídia
II Forum A Saúde do Brasil
Dirigentes de hospitais, clínicas e serviços de saúde, empresários do setor, médicos etc, debatem sobre a saúde no Brasil
Médico em obras
A expansão do atendimento e a conquista de mais eficiência nos sistemas público e privado do país passam por alterações urgentes no ensino da medicina, segundo a avaliação de especialistas
O ensino médico brasileiro atravessa grande processo de mudanças, entre elas o estágio obrigatório no SUS (Sistema Único de Saúde). O governo defende uma formação mais humanista, um médico que crie vínculos com o paciente. Mas as entidades médicas dizem que o cenário de má remuneração e falta de condições de trabalho não favorece esse objetivo.
A abertura desenfreada de escolas médicas privadas com cursos de baixa qualidade tem contribuído para a piora do ensino de medicina e colocado em risco a saúde da população. No Estado de São Paulo, 65% dos recém-formados nessas escolas são reprovados no exame do Conselho Regional de Medicina, contra 33% dos saídos de escolas públicas.
A formação médica no país foi um dos pontos centrais do 2º Fórum a Saúde do Brasil, promovido pela Folha nos dias 11 e 12 de maio. O encontro também discutiu a sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde público e privado, os entraves na área de inovação e a burocracia que dificulta a aprovação de novos medicamentos.
A questão central é obter recurso para expansão
2º Fórum a Saúde do Brasil debate a falta de dinheiro para a área, a formação dos médicos e os entraves do setor privado
DE SÃO PAULO COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O governo federal aposta suas fichas na ampliação do número de médicos atuantes no país e na abertura de novas vagas nos cursos de medicina, mas há ainda muitas lacunas, especialmente na formação dos médicos, que comprometem a qualidade do atendimento.
Na abertura do 2º Fórum a Saúde no Brasil, promovido pela Folha, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, disse que o governo está atento à expansão do ensino médico.
"Estamos inaugurando uma nova metodologia com o MEC para analisar quais municípios têm condições de receber novos cursos de medicina", afirmou ele.
Em dois dias de fórum, segunda (11) e terça-feira (12), especialistas debateram esse e outros assuntos ligados ao setor de saúde.
Eles foram unânimes em citar a falta de recursos do setor como um dos principais entraves--ainda mais em um cenário de crise econômica e de aumento nos casos de dengue, o que sobrecarrega o SUS e onera os cofres públicos.
Também falaram de problemas de gestão e do desperdício, que, segundo estimativas, chegam a drenar 20% dos recursos do setor.
Financiamento
Os custos da saúde no Brasil e o desafio de levantar recursos também foram temas amplamente discutidos ao longo do evento. Do debate, surgiram ideias como taxar as grandes fortunas para aumentar os recursos para a saúde, proposta levantada por Áquilas Mendes, professor de saúde pública da USP.
No entanto, só aumentar o bolo de investimentos na área não resolve o problema, segundo Marcos Bosi Ferraz, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). "É preciso atacar a ineficiência do sistema e combater o mau uso do dinheiro."
Na saúde privada, a escalada dos custos podem comprometer a sustentabilidade do setor, segundo dirigentes de planos de saúde e hospitais. A Anahp (associação dos hospitais privados) discute modelo de compras coletivas como forma de economizar, afirma Francisco Baletrin, presidente da entidade.
É preciso repensar o que significa resultado em saúde no Brasil "" ele não é medido pela quantidade de procedimentos realizados, disse Martha Regina de Oliveira, diretora-presidente substituta da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).
Pesquisa e regulação
Desburocratizar a regulação da pesquisa clínica e de novos produtos em saúde também é uma necessidade.
A lentidão para aprovar um novo medicamento no Brasil tem feito com que muitas indústrias farmacêuticas deixem de investir em ensaios clínicos no país, segundo Ana Paula Ruenis, diretora-presidente da Abracro, associação que representa as organizações de pesquisas clínicas.
Segundo ela, o prazo médio para o primeiro parecer da agência reguladora tem sido de 267 dias, mas já houve casos de um medicamento esperar mais de 480 dias para ser aprovado.
Ivo Bucaresky, diretor-presidente substituto da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), disse que o número alto de processos e a limitação de servidores estão por trás da demora.
Todos os 25 debatedores do fórum, que reuniu 280 participantes no MIS, em São Paulo, são unânimes em uma conclusão: quando se trata da crise da saúde, não existem soluções simples. Mas o enfrentamento das questões exige um diagnóstico preciso.
(ANDREA VIALLI, CLÁUDIA COLLUCCI, FERNANDA PERRIN, ANDREA VIALLI e IARA BIDERMAN)
ANÁLISE
Custeio do setor desafia todas as instâncias de governo
GUSTAVO PATU, DE BRASÍLIA
Embora a saúde esteja relativamente protegida do pacote de corte de gastos do segundo governo Dilma Rousseff, as perspectivas de ampliação das verbas públicas para o setor minguaram com a crise econômica.
O cenário de recessão neste ano e a expectativa de recuperação modesta nos próximos enfraqueceram uma vitória recente de congressistas e militantes ligados à área da saúde --a emenda constitucional que destina uma parcela mínima da receita da União ao setor.
Promulgado em março, o texto estipula uma elevação gradual dessa parcela, que chegará a 15% da receita até o final desta década. A arrecadação de impostos, porém, encolhe desde o ano passado e tende a acompanhar a estagnação da economia.
A regra significava um grande avanço quando foi proposta, em 2013 --na época, as verbas da saúde equivaliam a 12,8% de uma receita em expansão. Só com a freada da arrecadação em 2014, no entanto, o percentual já subiu para 14,9%.
O financiamento do setor desafia o governo federal, os Estados e as prefeituras desde que a Constituição de 1988 definiu a saúde como direito de todos e dever do Estado.
Trata-se do terceiro maior gasto público do país, atrás apenas de previdência social e educação --e desconsiderando os encargos das dívidas interna e externa, que não são escolhas do Estado.
Ainda assim, os cerca de 4% do PIB (Produto Interno Bruto, medida da renda nacional) destinados à saúde pública, algo como R$ 240 bilhões ao ano em valores atuais, representam um patamar baixo para os padrões internacionais.
Em países como Estados Unidos e França, a despesa passa dos 8% do PIB, somados todos os níveis de governo. Na América do Sul, Uruguai e Argentina gastam, respectivamente, 5,4% e 4,9%.
No Brasil, as normas para o financiamento da saúde começaram a ser definidas em 2000: Estados passaram a destinar um mínimo de 12% da receita ao setor, e municípios, 15%; para a União, foi estabelecido que os recursos deveriam crescer conforme a variação anual do PIB.
Ao longo da década passada, de forte expansão da arrecadação tributária, os gastos estaduais e municipais em saúde aumentaram em ritmo muito superior ao dos federais --o que deu força ao lobby pela alteração da regra fixada para a União.
Opção política
Mas a perda de espaço da saúde no orçamento federal não decorreu apenas das diretrizes legais: houve uma opção política, especialmente na administração petista, que decidiu priorizar os programas de transferência direta de renda às famílias.
Na área social, a escalada dos gastos foi puxada pelo pagamento de aposentadorias, pensões, seguro-desemprego, abono salarial, benefícios assistenciais a idosos e deficientes e Bolsa Família.
Os desembolsos com a saúde têm se limitado ao mínimo obrigatório, e as chances de ampliação caíram com a penúria orçamentária.
O cenário alimenta a defesa da criação de um tributo exclusivo para o setor, como a extinta CPMF, contribuição incidente sobre a movimentação financeira.
II Fórum elenca as razões do atraso na inovação
Custos altos e lentidão na aprovação de testes são barreiras para novos medicamentos
DE SÃO PAULO COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A inovação anda muito devagar no setor de saúde.
A burocracia, a falta de agilidade na aprovação de pesquisas clínicas e de novos produtos, os altos custos e as deficiências de infraestrutura logística no país são algumas das barreiras ao avanço, na avaliação de participantes do 2º Fórum a Saúde do Brasil, promovido pela Folha.
Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), afirma que "o Brasil criou nos últimos anos uma série de incentivos à inovação, mas não diminuiu os enormes obstáculos que existem para as empresas fazerem pesquisa".
Um desses obstáculos aos quais ele se refere são os custos trabalhistas. "Nós temos uma complexidade tributária que onera empresas para tudo, inclusive para inovação."
Duas mãos
Um estudo feito pela Fundação Don Cabral também aponta o chamado "custo Brasil" como um dos responsáveis pelo entrave das inovações em saúde.
Esse custo é decorrente de diversos fatores como carga tributária alta e complexa, juros altos, custo elevado de energia e matérias-primas, deficiência da infraestrutura logística e leis trabalhistas obsoletas.
"Esses obstáculos acabam se acumulando. É como se o governo tivesse duas mãos, com uma incentiva a inovação, com a outra cria barreiras", afirmou Brito Cruz.
Na opinião de Carlos Goulart, presidente da Abimed (Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Equipamentos, Produtos e Suprimentos Médico-Hospitalares), outro problema que entrava o processo de inovação é a falta de entrosamento entre universidade, indústria e empresa.
"A agência Bloomberg fez um estudo sobre pesquisa e desenvolvimento, e o Brasil ficou em 47º lugar em capacidade de inovação. Nós temos recursos, mas patinamos", diz Goulart.
Na opinião do presidente da Abimed, o país tem como acelerar a criação de patentes de novas drogas, mas precisará investir mais em pesquisa privada.
Paulo Hoff, diretor do Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Octavio Frias de Oliveira), enumera mais problemas. Segundo ele, não há no Brasil uma correlação entre a publicação de artigos em revistas científicas e a geração de patentes.
"Muito do que estudamos hoje poderia gerar novas patentes de medicamentos, mas esses processos não avançam por causa da burocracia para produzir ensaios clínicos."
Brito Cruz, por sua vez, recomenda cuidado nessa comparação entre produção científica e patentes de drogas.
"Em um país de economia saudável, quem mais faz patente é a empresa, não é a universidade", diz o diretor científico da Fapesp.
Nos Estados Unidos, por exemplo, 80% das pessoas que se dizem cientistas trabalham para empresas, e não para universidades, segundo ele. "Lá, menos de 5% das patentes vêm de universidades", completa Brito Cruz.
Paulo Hoff aponta para a falta de agilidade que envolve a regulação dos ensaios clínicos. "No Brasil, a autorização pode levar até um ano, quando lá fora são três ou quatro meses", compara.
Jarbas Barbosa, secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, reconhece que há uma certa resistência à inovação no Brasil, mas afirma que ela não é de todo mal. "Isso impede um certo 'novidadismo' de incorporar [tecnologias] sem critério", afirmou ele.
Na visão do secretário, aproximar os institutos de pesquisa e a indústria é um dos requisitos para acelerar os processo de inovação na saúde brasileira.
"Há um bom conjunto de colaboração entre universidades e empresas privadas. Além disso, a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] tem tomado medidas regulatórias para aperfeiçoar o ambiente de testes para novos medicamentos", disse Jarbas Barbosa.
Na área de oncologia, a inovação se faz ainda mais necessária, lembra Paulo Hoff, do Icesp.
"Hoje, 40% dos pacientes com câncer vão morrer da doença, por isso precisamos acelerar a criação de novos medicamentos."
(CLÁUDIA COLLUCCI E ANDREA VIALLI)
Só 5% dos hospitais têm selo de qualidade
Estado de SP concentra 40% das instituições que passam por processos de certificação no país
CLÁUDIA COLLUCCI DE SÃO PAULO
Apenas 4,61% dos 6.140 hospitais brasileiros possuem algum tipo de acreditação, espécie de chancela de que a instituição opera dentro de padrões estabelecidos de qualidade e segurança.
Não há lei que obrigue a instituição a buscar certificação, feita por empresas externas encarregadas de avaliar centenas de processos em um hospital como prontuários, taxa de infecção e capacitação de funcionários.
Nos EUA e no Canadá, governos e seguradoras de saúde exigem certificação dos hospitais com os quais firmarão contratos ou parcerias. E pacientes usam o selo como parâmetro para escolher.
No Brasil, não há incentivo por parte dos governos ou das operadoras de saúde para que mais hospitais busquem a acreditação.
"Não há nenhuma vantagem em ser acreditado no Brasil, nem penalidade por não sê-lo. Isso fica a critério dos gestores de hospitais e da disponibilidade de recursos", diz Ana Maria Malik, coordenadora do núcleo de saúde da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e autora de estudo sobre acreditação no país.
Dos 283 hospitais acreditados até o mês passado, quase 40% estavam concentrados em território paulista. Na região Norte, Acre, Rondônia, Roraima e Tocantins não têm instituições certificadas.
Nos EUA, mais de 90% dos hospitais têm acreditações, segundo informações de Jean Moody-Williams, diretora do programa de qualidade ligado ao CMS, órgão do governo americano responsável pelos serviços públicos de saúde (Medicare e Medicaid).
O CMS não fecha contratos com hospitais sem essa chancela. "Abrir-se para a acreditação é o mínimo que se espera de uma instituição hospitalar", disse Jean à Folha durante um congresso de qualidade hospitalar promovido pela FGV em abril.
Não há garantia de que a acreditação afete diretamente a qualidade, mas indica que o hospital deseja melhorar. "Isso abre possibilidades de novas e boas práticas de gestão", explica Malik.
A economista da saúde Maureen Lewis, professora na Georgetown University (Washington), tem a mesma avaliação. "A acreditação dá uma garantia mínima. Se ninguém fiscaliza, os hospitaisfazem o que querem", afirma.
Para ela, a certificação traz mais segurança ao paciente. "Os hospitais não podem deixar aumentar o nível de infecção hospitalar senão perdem o selo", exemplifica.
Na opinião de Maria Carolina Moreno, superintendente da Organização Nacional de Acreditação, uma das quatro acreditadoras atuantes no Brasil, o custo, de R$ 60 mil para hospital de 200 leitos, é uma das barreiras à adesão.
Há outras. A prática prevê mudanças na cultura, o que pode gerar conflitos entre profissionais de saúde. "Não temos pretensão de fazer com que todos os hospitais sejam acreditados. Mas os padrões de segurança do paciente devem atingir a todos."
Até 70% dos erros que ocorrem em hospitais brasileiros, como medicações trocadas ou operação de membros errados, seriam evitados se as instituições seguissem protocolos já estabelecidos.
País aumenta nº de médicos, mas concentração continua
Brasil expandiu a quantidade de vagas, mas ainda faltam profissionais em diversos Estados
JULIANA COISSI DE SÃO PAULO
O Brasil nunca viveu uma expansão de médicos como atualmente, com novas vagas em escolas de medicina e vinda de estrangeiros pelo Mais Médicos. A distribuição, porém, permanece desigual pelo território.
A média nacional, de dois médicos por mil habitantes, contrasta com locais como Maranhão, Pará e Amapá, que não mantêm um profissional para cada grupo de mil, diz a Demografia Médica no Brasil 2013, do CFM (Conselho Federal de Medicina).
Baixa remuneração e falta de condições de trabalho, aliadas a qualidade de vida dos grandes centros, explicam a concentração de profissionais, dizem especialistas.
O país reúne hoje 430 mil médicos, segundo o CFM (o Ministério da Saúde estima pouco mais de 400 mil). Nos anos 90, eram 219 mil profissionais. A pasta prevê chegar a 600 mil médicos em 2026 através da criação de mais vagas em cursos de medicina e nas residências. Assim o país alcançaria a marca de 2,7 profissionais para cada mil habitantes.
No país, o Maranhão apresenta a pior proporção de médicos no país-- 0,71 a cada mil habitantes. Para reverter o quadro, o governo Flávio Dino (PC do B) traçou metas até "sonhadoras", admite o secretário estadual da Saúde, Marcos Pacheco.
O objetivo é dobrar o número de hospitais de grande porte (atualmente são quatro), de centros de apoio ao diagnóstico espalhados pelo Estado (são 12) e ampliar as vagas na universidade estadual.
Em Roraima, com o menor número absoluto de médicos --cerca de 900--, os municípios têm dificuldade para pagar em dia. "O prefeito não paga dois, três meses e o profissional desiste", diz o secretário-adjunto da pasta, César Penna.
Se o Mais Médicos conseguiu levar profissionais para áreas remotas do Norte e Nordeste, o desafio agora é a carência de especialistas, diz Wilson Alecrim, presidente do Conass, entidade que reúne secretários da saúde dos Estados e chefe da pasta no Amazonas.
"É a hora do segundo passo. O profissional do Mais Médicos consulta, mas, em muitos casos, o paciente tem de ser referenciado para o especialista", afirma ele.
Qualidade
A expansão de vagas na formação médica é vista com preocupação pelas entidades médicas. "É excessiva a formação médica que o governo federal está propondo", afirma o presidente do CFM, Carlos Vital Tavares Corrêa Lima. "São abertas escolas sem condições de ensino e com dificuldade de docência e de infraestrutura", completa.
Segundo o Ministério da Saúde, o número de vagas em medicina, atualmente de 0,8 por dez mil habitantes, é muito baixo. "Posso assegurar que não tem uma expansão de vagas além da necessidade", afirma Hêider Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde da pasta.
Mulheres predominam no novo perfil da profissão
Em SP, Maioria que acaba de se formar em medicina é da elite, fez cursinho e nunca trabalhou na vida
DE SÃO PAULO
Mulher, jovem e branca. Mora com os pais, nunca trabalhou, sempre estudou em escola privada e fez ao menos dois anos de cursinho para entrar na faculdade.
Os pais têm curso superior e ganham acima de dez salários --condição de menos de 3% da população brasileira.
Esse é o perfil dos recém-formados em medicina no Estado de São Paulo, segundo dados inéditos do Cremesp (conselho regional de medicina), extraídos do exame que se tornou obrigatório para quem deseja atuar no Estado.
As informações revelam o que pesquisas anteriores já sinalizavam: quem estuda medicina no Brasil pertence a uma elite muito distante da realidade brasileira em que 60% das pessoas vivem com menos de um salário mínimo.
"Acha que os filhos dessa elite vão querer atender os muito pobres? Trabalhar em periferias ou áreas remotas? Não. Vão querer atender aonde vão ganhar mais", afirma Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp.
Outra pesquisa, publicada em 2013 pelo Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), corrobora isso: de cada cem formandos em medicina no Brasil, apenas cinco desejavam trabalhar em cidades pequenas.
Só um quinto dos recém-formados queriam atuar em clínica geral, como nos programas de saúde da família.
"A maioria já tem um padrão socioeconômico elevado e quer mantê-lo. Escolhe as especialidades valorizadas pelo mercado, mais ligadas a tecnologias e não a humanidades", diz Daniel Knupp, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
Ele informa que 70% das 1.100 vagas de residência em medicina de família ficam ociosas todos os anos por falta de interessados. As vagas equivalem a cerca de 10% do total oferecido em residência médica no país. Em países como Canadá, Holanda e Inglaterra, 40% das vagas são para clínica geral.
Mauro Luiz de Britto Ribeiro, vice-presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), diz que o médico é um profissional "como outro qualquer", atraído por leis do mercado. "Se o governo investisse em políticas que garantissem melhor remuneração e condições de trabalho, haveria mais procura."
Daniel Knupp concorda. "No Brasil, especialistas ganham dez vezes mais do que médicos de família. No Reino Unido, especialistas ganham no máximo 30% a mais."
Os estudos do Cremesp e da Fiocruz mostram que o desejo dos jovens médicos não coincide com o que determinam as novas diretrizes curriculares do ensino médico, com prazo para serem implantadas até o fim de 2018.
Publicadas em junho de 2014, elas sinalizam, que os médicos precisarão sair das faculdades mais preparados para atender às necessidades básicas da população do SUS.
Mas qual o caminho para alcançar isso? Um deles, na avaliação de Luna Filho, é ampliar o ingresso nas escolas médicas de pessoas de outros segmentos sociais.
Programas federais como o Prouni (Programa Universidade para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) vêm possibilitando que estudantes com menor poder aquisitivo façam cursos mais caros, como medicina, mas ainda são minoria.
No estudo do Cremesp, por exemplo, só 25,6% dos recém-formados foram custeados por esses programas.
Para Knupp, outra opção envolveria mudanças na seleção dos interessados em cursar medicina e regulação na oferta de vagas de residência para atender demandas reais do sistema de saúde.
Feminização
Na opinião da médica Patrícia Tempski, pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP, é preciso um olhar especial para a feminização da medicina, que se consolidou no país a partir de 2008. Hoje, quase 60% dos novos médicos são mulheres.
Essa mudança influenciará o modelo de cuidados de pacientes e a organização da saúde, com vantagens e desvantagens. Entre os pontos positivos está o fato de a mulher preferir especialidades básicas, como pediatria e ginecologia, e discutir mais os tratamentos com pacientes.
Por outro lado, segundo Mario Scheffer, professor da USP, ela tende a fazer cargas horárias menores, ter menos vínculos de trabalho (o homem, além do consultório, tem, em média, três empregos), dificuldades em se fixar em áreas distantes e se aposenta antes.
(CLÁUDIA COLLUCCI)
ANÁLISE
A reforma do sistema começa com uma nova visão do vestibular
GUSTAVO GUSSOJUAN GÉRVAS ESPECIAL PARA A FOLHA
A meritocracia, que pauta os vestibulares de medicina no Brasil atualmente, é eficiente em promover os melhores entre os estudantes que saibam resolver questões de múltipla escolha e escrever uma redação.
Entendida como a capacidade de aprender uma disciplina, é uma condição necessária, mas não suficiente para selecionar um médico. E muitas vezes é usada no Brasil como limitadora de acesso à universidade. Perdemos bons médicos a cada ano com Enem e vestibulares.
Algumas faculdades de medicina ao redor do mundo, como a canadense McMaster, passaram a selecionar os postulantes que já possuíam notas mínimas em avaliações básicas através de atividades chamadas minientrevistas múltiplas (MMI, na sigla em inglês).
Nelas, os alunos passam por etapas que avaliam comunicação, colaboração, ética, pensamento crítico, sensibilização para questões sociais e políticas de saúde, e outras qualidades pessoais. É uma forma de selecionar que simula melhor o que o estudante encontrará de fato na prática médica.
Mas tudo isso ainda não é suficiente. É fundamental que, na medicina, os estudantes representem a sociedade na sua diversidade. Na Holanda, chegou-se a usar o sorteio como forma de seleção entre alunos bastante qualificados. Ele tem a vantagem de não discriminar os alunos e dar igualdade de oportunidades a todos.
O processo seletivo, como tem sido feito no Brasil, vai na direção contrária. Tem produzido estudantes de medicina extremamente homogêneos --um estudo indicou que 90% dos alunos da área tinham renda familiar acima de dez salários mínimos.
Estas distorções na seleção de futuros médicos podem levar a inferências mágicas que são frequentes, como a que supõe também serem aqueles da elite os merecedores de boa assistência médica. Sabemos que não é assim.
Todos precisam de excelente atendimento médico, seja rico ou pobre, pertencente ou não a minoria, habitante do mundo rural, urbano, ou de áreas isoladas. A reforma do vestibular de medicina tem que ser feita para refletir estes perfis e estas necessidades.
GUSTAVO GUSSO é médico de família e professor da Faculdade de Medicina da USP
JUAN GÉRVAS é professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Espanha
Por que é que eles desistem do mais médicos?
Participantes que deixaram o programa apontam questões pessoais e profissionais para saída
DE SÃO PAULO
Bruno foi chamado para uma cidade mais longe do que a que preferia. Armando teve problemas familiares que o impediram de continuar. Solange diz não ter ganho parte do salário ao voltar de um congresso e desistiu.
Motivos pessoais, proposta de emprego em outra cidade, aprovação na residência médica e falha de comunicação são as explicações comuns dos profissionais que desistem do programa Mais Médicos.
Segundo o Ministério da Saúde, 361 pessoas abandonaram o programa federal, um número considerado pelo governo bastante inferior comparado aos atuais 14.462 profissionais. Assim, ao todo, a taxa de desistência é de 2,5%, sendo que a maioria dos desistentes são médicos brasileiros.
Anunciado em 2013 como principal vitrine social do governo Dilma Rousseff, o Mais Médicos previa alocar profissionais principalmente na rede básica de saúde em locais prioritários, como cidades mais remotas e periferias.
A vinda de médicos de Cuba garantiu que a meta fosse atingida (o governo queria chegar à marca de 13 mil profissionais em 2014). Hoje, os cubanos representam 79% do total de médicos em atuação.
Problemas
O otorrinolaringologista Armando Lahera Padron, 59, atuou por duas semanas em Ariquemes, Rondônia (160 quilômetros da capital Porto Velho), pelo Mais Médicos, até deixar o posto, no ano passado.
Há 15 anos no Brasil, o cubano já trabalhava na rede municipal concursado como plantonista, quando se inscreveu no programa federal. "Tive problemas familiares fora do país, viajava praticamente a cada 15 dias e não pude continuar".
O pediatra Bruno Ferreira Miguel, 26, queixa-se de não ter sido convocado para atuar em sua cidade, Miguelópolis, no interior de São Paulo (cerca de 380 quilômetros da capital paulista).
O pediatra se inscreveu no Mais Médicos no ano passado, mas foi chamado para assumir em Ribeirão Preto, a 132 quilômetros de distância de sua cidade.
Como trabalha em plantões na Santa Casa de seu município, preferiu desistir da oferta. Para o edital deste ano do Mais Médicos, ele diz que houve uma falha no sistema para sua inscrição e que a vaga continua aberta.
"Eu assumiria aqui, sim, seria até mais fácil. Só assumiu aqui na cidade um médico [do programa]. Nossa demanda é grande. Só no pronto-socorro são quase 200 a 300 pessoas em um plantão, fico morto depois", disse ele.
Em Rio Branco, no Acre, a médica Solange da Cruz Chaves reclama por não ter recebido ajuda de custo para refeição e moradia, por já morar na capital. Ela afirma que os outros intercambistas receberam os valores.
A médica conta que trabalhou por dois ou três meses no programa, mas que, ao voltar de um congresso médico, previamente avisado, deixou de receber salário e, por isso, decidiu se desligar.
Já a prefeitura de Rio Branco diz que alertou o governo federal que a profissional "não estava comparecendo ao serviço". Por isso ela teria sido desligada, completa o município.
'Mais brasileiros'
Segundo Hêider Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do ministério, um motivo comum de desistência entre os médicos, principalmente os mais jovens, é a entrada na residência médica.
Muitas vezes os pedidos de desligamento ocorrem logo após os profissionais serem aprovados na residência, afirma ele --conciliar as duas funções é impossível, pela carga horária.
Se os cubanos ainda predominam, na nova etapa do Mais Médicos, lançada neste ano, os brasileiros lideraram as inscrições. Como chamariz aos recém-formados, um dos atrativos foi a oferta de um bônus de 10%para a prova de residência --é necessário que o médico fique pelo menos um ano no programa e seja bem avaliado.
A médio e longo prazos, segundo o secretário, o ministério pretende ampliar o número de vagas em cursos de medicina e também de residência. O objetivo é alcançar a meta de 2,7 médicos por mil habitantes até 2026.
(JULIANA COISSI)
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Unicamp cria projeto para ensinar empatia e compaixão a futuros médicos
JULIANA VINES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
No início do curso, Rafael Gomes queria ser como Hunter "Patch" Adams, médico americano cuja história virou filme, conhecido por seu estilo baseado no afeto e na proximidade com os pacientes.
Com o tempo, viu que o mais provável seria virar um dr. House, personagem do seriado homônimo que sabe tudo de medicina, mas quer distância de gente.
"Na faculdade, nossa visão poética é destruída. Aprendemos que ser bom médico é saber resolver problemas", diz Gomes, 31, formado no ano passado pela Unicamp.
Ele não se considera um dr. House e atribui parte disso a um projeto do qual participou no último ano.
Coordenado pelo professor Marco Antonio de Carvalho Filho, o projeto surgiu da percepção de que os alunos do último ano não estavam à vontade com seus pacientes.
"A faculdade dá conhecimento técnico, mas não ensina a ser médico, a lidar com pessoas, a essência da profissão", diz Carvalho Filho.
Para ensinar empatia e compaixão a futuros médicos, há debates sobre ética e simulação de consultas com atores, de forma a treinar habilidades de comunicação.
"O pensamento comum é de que é preciso se afastar do paciente para ter boa conduta. Vou contra essa corrente."
Segundo o professor, os alunos entram em contato com a morte e ninguém conversa sobre isso no curso. "Muitos acham que a solução para não sofrer é se afastar."
Antes de participar das simulações, o recém-formado José Antonio Nadal, 26, tinha medo de ser aquele que dá a pior notícia da vida a alguém. "Depois, entendi que podemos criar vínculo, trabalhar com o paciente e ser lembrado como alguém que o ajudou em um momento crítico."
Mais de 500 alunos passaram pelo projeto. Os resultados foram analisados na tese de doutorado de Marcelo Schweller, médico da Unicamp.
Ele constatou que a empatia dos estudantes aumentou. Além disso, 94% dos alunos acharam que sua capacidade de ouvir o doente melhorou.
"Quando estão no ambulatório os alunos se preocupam em atender rapidamente. É raro um professor discutir se o paciente saiu satisfeito, se o médico soube ouvir. Na simulação, refletimos sobre isso", diz Schweller.
Carvalho Filho acha que esse é só um começo. "Essa atitude mais humana deveria permear toda a formação, não ser concentrada em projetos ou disciplinas."
A humanização se tornou necessidade, na opinião de Flávia Pileggi Gonçalves, coordenadora do departamento de medicina da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). "Pesquisas mostram que mais coisas interferem no processo saúde-doença que gene ou remédio", diz.
Na UFSCar, onde o currículo já é integrado conforme as diretrizes definidas pelo Ministério da Educação em 2014, os alunos estudam casos clínicos a partir da perspectiva de várias áreas.
"Se discutimos um caso de asma, falamos dos fatores psicológicos e sociais envolvidos", explica Gonçalves.
Desde o primeiro ano, os estudantes já atuam no SUS e têm contato com pacientes. "O aluno cria vínculos com as famílias. A metodologia enfocada na prática é um passo em direção a uma medicina mais humanizada", diz.
Na Famema (Faculdade de Medicina de Marília) o aluno também pratica desde o início, em laboratórios com pacientes simulados, e é orientado por médicos e profissionais de comunicação. "Ele vê o paciente como um todo, não apenas a doença", diz Mercia Ilias, coordenadora do curso.
Frieza do médico é queixa comum entre pacientes
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
As iniciativas para melhorar a relação entre estudantes de medicina e seus pacientes surgem como resposta a uma queixa comum: a de que os médicos são frios e conversam pouco durante os atendimentos.
"Não precisa perguntar muito para constatar que as pessoas saem insatisfeitas das consultas," afirma Rodrigo Lima, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e da Comunidade. É uma impressão que independe de classe social. "Mesmo quem tem plano de saúde diz que não foi bem atendido."
Para Izabel Cristina Rios, coordenadora do núcleo de humanização do Hospital das Clínicas da USP, a relação médico-paciente em muitos casos já poderia ser chamada de relação instituição-cliente: a pessoa paga o hospital ou convênio e é atendida.
Ela não sabe dizer se é a formação técnica das universidades que deixa os médicos mais frios ou se é o mercado que dificulta um atendimento mais humanizado. "Não dá para separar. O ensino é voltado para o trabalho e o mercado pede um profissional técnico e rápido", diz.
Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e diretor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, culpa a formação médica. Segundo ele, a universidade valoriza o conhecimento técnico em detrimento de valores humanos como ética e respeito.
Ele é crítico às mudanças curriculares nos cursos de medicina feitas pelo Ministério da Educação no ano passado, que devem ser incorporadas pelas universidades até o fim de 2018. Entre outras coisas, as novas diretrizes preveem estágio obrigatório no SUS e um maior peso para as práticas humanistas.
"Não tem como impor uma mudança para todo o país. Um currículo realmente humanista deveria ser centrado na comunidade e nas doenças prevalentes de cada região", diz Lopes.
Já para Lima, as modificações são interessantes, mas insuficientes. "O modelo da formação médica de hoje desencoraja os estudantes. Não precisamos ensinar os alunos a serem humanos, precisamos deixar de ensinar o oposto."
Henrique Batista e Silva, secretário-geral do Conselho Federal de Medicina, critica, além do ensino, as políticas públicas de saúde. "Não há boas condições de trabalho, falta tempo, os médicos são mal remunerados. Isso contribui para que as boas práticas não sejam aplicadas."
Outro lado
Hêider Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, diz que não dá para culpar o sistema. "Exemplos mostram que é possível fazer diferente, como com o programa Mais Médicos e com a política de humanização do SUS. Na atenção básica, orientamos que sejam criados vínculos com o paciente e que ele se sinta acolhido."
Em nota, o MEC afirmou que as novas diretrizes curriculares foram criadas com base em uma série de audiências públicas e têm como fim integrar a educação médica brasileira a um movimento mundial em que, "além de competência técnica, (...) é esperado do profissional médico um desenvolvimento adequado de sensibilidade humanística".
(JV)
Medicina da USP agora é fora da sala de aula
SABINE RIGHETTI COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Quem começou medicina na USP neste ano encontrou um cenário de mudança. A graduação de seis anos, considerada a melhor do país, sofreu redução de 30% no número de disciplinas, que agora são oferecidas de forma integrada. O curso ganhou abordagem mais humanizada, com foco no paciente.
Os novos alunos estudam conjuntamente temas que antes ficavam em gavetas separadas, caso de anatomia e histologia (estudo dos tecidos). As provas se tornaram semestrais, avaliando o conteúdo de maneira mais unificada.
Paralelamente, outros temas ganharam espaço no currículo, como "ciclos da vida", disciplina que aparece no primeiro ano do curso e dá noções de cuidados médicos na infância e terceira idade.
O aluno passa menos tempo na sala de aula: se antes ficava quase oito horas por dia confinado, agora a média gira em torno de cinco horas.
"Com o tempo que sobra, o estudante pode se envolver em pesquisa e em trabalhos de extensão voltados ao atendimento de pacientes", diz Edmund Chada Baracat, ginecologista e docente da USP que encabeçou a mudança.
Esse tipo de currículo, mais moderno e flexível, já é seguido por escolas de elite há muito tempo. Nos EUA, país que concentra seis das dez melhores universidades de medicina do mundo, segundo o ranking Times Higher Education, um estudante não passa mais que três horas em aulas expositivas.
"Às vezes, um professor dá exercício em aula de manhã e os alunos têm de resolvê-lo sozinhos ou em grupos até o fim do dia", conta Ana Flávia Garcia Silva, 22. Estudante do quinto ano da USP, ela traz no currículo intercâmbios em Michigan e Harvard -considerada a segunda melhor do planeta.
Quando esteve lá, passou quase o tempo todo no laboratório. De volta ao Brasil, teve de "repetir" um ano no curso porque não conseguiu equivalência do que estudou lá com disciplinas obrigatórias daqui. "Quando vi as mudanças no curso da USP, queria prestar vestibular de novo", brinca.
Bebendo na fonte
Parte das inspirações para a mudança da USP veio justamente dos EUA. Apesar de diferenças cruciais na formação educacional nos dois países, há aspectos que ainda podem ser importados.
"Aqui, a relação médico-paciente passa por disciplinas, exercícios e estudos de caso", diz Marcos Montagnini, geriatra e responsável pelo grupo de cuidados paliativos da Universidade de Michigan, uma das instituições que influenciaram a USP.
São os profissionais de paliativos que trabalham a humanização da medicina de maneira mais profunda, tratando aspectos físicos, psicológicos e espirituais de pacientes com doenças crônicas terminais. Nos EUA, a disciplina é obrigatória há mais de uma década.
Por aqui, não há essa exigência. Para Baracat, da USP, a redução da carga horária pode fazer com que os estudantes tenham tempo para se dedicar a assuntos mais humanistas, como paliativos, ainda na graduação. "Antes isso era quase impossível."
Giovanni Guido Cerri, diretor da AMB (Associação Médica Brasileira), avalia que a mudança no curso da principal universidade do país é simbólica. Dá um oportuno chacoalhão no tom em que o médico vinha sendo formado. "Mas ainda falta o estudante conhecer com mais profundidade o SUS e as características da nossa saúde pública e privada", diz. "O Brasil é complexo, e precisamos formar os médicos adequados para um país assim."
Recém-formado erra o básico no "provão"
Exame de avaliação reprova mais da metade dos jovens em SP, mas não impede ninguém de exercer ofício
DE SÃO PAULO
"Eu tenho medo de médico hoje. E olha que dou aula há 30 anos." A frase de Segisfredo Brenelli, presidente da Abem (Associação Brasileira de Educação Médica), arrancou risadas da plateia no 2º Fórum a Saúde do Brasil, promovido pela Folha, mas reflete bem o atual cenário da formação médica no país.
Em vigor há dez anos, o exame de avaliação do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) tem reprovado mais da metade dos recém-formados em medicina no Estado de São Paulo --que concentra algumas das melhores escolas médicas do país.
Segundo Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp, os estudantes erram questões básicas sobre atendimento inicial de vítima de acidente de trânsito ou de ferimento por arma branca, pneumonia, pancreatite aguda e pedra na vesícula.
Apesar de ser exame obrigatório para obtenção do registro do CRM (Conselho Regional de Medicina), mesmo quem vai mal nele não é impedido de exercer a profissão. O conselho não pode, por força de lei, condicionar o registro ao resultado da prova.
A taxa de reprovação é ainda maior nas escolas privadas: 65,1% contra 33% nas escolas públicas, conforme dados do "provão" de 2014. As instituições mais novas são o maior problema, segundo Luna Filho. "Não tem uma escola aberta nos últimos dez anos que tenha tido resultado bom no exame."
Segundo os especialistas, o número elevado de cursos de medicina dá margem a discrepâncias em todo o país, como cursos de medicina coordenados por profissionais de outras especialidades e escolas que cobram caro pelas mensalidades sem oferecer formação de qualidade.
"Antes, era preciso ser um bom médico para ser um bom professor de medicina. Hoje, já não precisa ser nada", afirma Brenelli, da Abem.
Para Mario Dal Poz, professor do Instituto de Medicina Social da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), a avaliação de alunos, além de ser ferramenta para as próprias escolas aprimorarem o ensino, tornou-se uma necessidade pública, uma medida protetiva para a sociedade.
"Já são 250 escolas, sendo que 70 delas, mais recentes, ainda não formaram nenhum médico. Aquelas com mais de seis anos já formam mais de 20 mil médicos por ano."
O tipo de avaliação necessário não é um consenso. Tanto governo federal quanto CFM (Conselho Federal de Medicina) e Abem defendem que os alunos sejam avaliados periodicamente durante o curso, e não no final.
"Defendemos um teste de avaliação contínuo, não no final. Mas o CFM não desqualifica o exame do Cremesp", diz Mauro Ribeiro, vice-presidente da CFM.
(CLAUDIA COLLUCCI)
OPINIÃO
Ensino tem que se adaptar ao exercício da medicina
GONZALO VECINA NETO ROBERTO DE QUEIROZ PADILHA ESPECIAL PARA A FOLHA
No atual contexto do ensino superior médico no país, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) apontam para uma formação orientada às necessidades da sociedade e à integralidade do cuidado à saúde. Também orientam o uso de metodologias ativas de ensino e a contextualização da formação no Sistema Único de Saúde (SUS).
Há uma divergência das práticas tradicionais, ainda hegemônicas, e essa mudança indica um diálogo tardio, mas nascente, entre os Ministérios da Saúde e da Educação. A sociedade deve ficar atenta para que essa articulação seja aprofundada e seus frutos, colhidos.
Como, historicamente, os modelos de formação respondem a um determinado modelo de atenção à saúde e vice-versa, as mudanças precisam ocorrer nas duas pontas.
Na atenção à saúde, temos que enfrentar as insuficiências dos modelos fragmentados, centrados na hospitalização e na dimensão biológica do processo saúde-doença. No ensino superior, precisamos questionar a pedagogia tradicional, o foco no conhecimento dos docentes com postura passiva e acrítica dos estudantes, a despersonalização das trajetórias de aprendizagem, que são singulares, e a valorização do domínio cognitivo como capaz de predizer competência.
Ou seja, temos que mudar substancialmente o modo de educar o futuro médico, fazendo com que o aluno se transforme no sujeito de seu processo de formação.
Com diferentes estratégias, as iniciativas de mudança visam à ampliação das capacidades dos profissionais, para que resgatem a humanização da saúde e o compromisso com uma prestação de serviços com qualidade, eficiência e segurança.
O perfil do médico do século 21 é aquele capaz de se manter permanentemente atualizado e de trabalhar articuladamente com uma equipe multiprofissional e com outros setores da sociedade, investindo na promoção e proteção da saúde, de modo integrado ao meio ambiente e às sociedades.
Entretanto, há desafios a serem superados. A maior aproximação dos mundos do trabalho e do ensino é um ponto chave. No mundo do trabalho, os serviços de saúde terão que servir de espaço real da elaboração do novo médico e, mais além, ser um local de contínua construção do conhecimento, com o profissional em exercício.
A maioria dos estudantes de medicina chega às universidades com impressionante vontade de ajudar as pessoas e de contribuir para a sociedade. Cabe aos serviços e à academia manter essa chama acesa. E isso será possível se conseguirmos dar a estes alunos o protagonismo que eles desejam e que nós professores lhes negamos por nossa incapacidade de enxergar a contemporaneidade.
GONZALO VECINA NETO é superintendente do Hospital Sírio-Libanês e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP
ROBERTO DE QUEIROZ PADILHA é superintendente de ensino do Hospital Sírio-Libanês
OPINIÃO
Faculdades precisam de testes regulares e mais vagas
É necessário um número maior de médicos. não seria inteligente um exame que barre quem já fez seis anos de curso
HÉLIO SCHWARTSMAN COLUNISTA DA FOLHA
A prova a que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) submete os recém-formados é tão polêmica que não conta nem sequer com o apoio do Conselho Federal de Medicina, muito menos de governantes, donos de escola, alunos etc. Para tornar o quadro ainda mais "sui generis", essa é uma daquelas raras situações em que todos os lados têm razão.
A qualidade dos egressos de curso de medicina no Brasil realmente deixa a desejar. Os números da prova do Cremesp são um indicativo disso, ainda que não dos mais precisos. Na mais recente versão do exame, a maioria (55%) dos candidatos não conseguiu um índice de acertos superior a 60%. E tem sido mais ou menos essa a taxa ao longo dos últimos anos. Obviamente, ninguém deseja ser atendido por um profissional que domina menos de 60% da matéria. Por essa lógica, faria sentido adotar um exame nacional de desempenho, nos moldes do que a OAB impõe aos futuros advogados, como defende o Cremesp.
O quadro é de fato desalentador, mas há um porém. Devido a tecnicalidades jurídicas, a prova do Cremesp em seu formato atual sofre de um defeito insanável: o recém-formado é obrigado a comparecer no dia do teste e entregá-lo, mas recebe seu diploma independentemente do desempenho. Pior, a nota é secreta. É lícito supor, portanto, que, em um exame para valer, os resultados seriam um pouco melhores. Um pouco, mas não muito, frise-se, já que o teste do Cremesp não é especialmente difícil e que os índices de aprovação não eram muito melhores quando ele era optativo.
E esse nem é o problema mais espinhoso. O Brasil precisa melhorar a qualidade dos médicos, mas também precisa de um número maior desses profissionais. O país conta hoje com cerca de 1,8 médico por mil habitantes e o governo federal trabalha com a ideia de chegar a 2,5 por mil. A carência é sentida especialmente por prefeitos e governadores, que não conseguem manter um quadro de profissionais compatível com a demanda e com seu orçamento.
Nessas condições, não seria muito inteligente instituir um exame obrigatório e eliminatório que barraria alguém que já fez seis anos de curso e está a um passo de poder, senão exercer boa medicina, ao menos ajudar a resolver as escalas abertas dos postos de saúde e hospitais.
Não há solução fácil para o dilema. Eu tentaria resolvê-lo aumentando as vagas em faculdades de medicina, mas zelando pela qualidade com avaliações oficiais distribuídas ao longo do curso e não concentrada no último ano, quando o prejuízo de uma reprovação é muito maior.
A imagem do doutor
Publicado em 1948, ensaio humanista sobre rotina de médico nos EUA marcou o fotojornalismo, mas é criticado por idealizar a profissão
BRUNO FÁVERO DE SÃO PAULO
Um médico que ganha pouco, atua numa região inóspita e se vira para atender mais pacientes do que dá conta.
Poderia ser a rotina de um profissional hoje no interior do Brasil, mas é a vida do americano Ernest Guy Ceriani (1916-1988) na década de 1940, mostrada por W. Eugene Smith (1918-1978) em "Country Doctor", um dos mais importantes ensaios fotográficos do século 20.
Publicado em 1948 pela revista "Life", o trabalho mostra as dificuldades do médico para atender sozinho os 2 mil habitantes da comunidade de Kremmling, Colorado, no oeste dos EUA.
Por 23 dias, o fotógrafo acompanhou o dia-a-dia do clínico, testemunhando de terapia para dor de estômago a amputação de membros.
A perspectiva humanista e o uso da sequência de imagens para contar uma história tornou "Country Doctor" um dos ensaios mais influentes de seu tempo e ajudou a firmar Smith como um dos maiores do fotojornalismo.
"Já existia uma tradição de grandes reportagens, mas não dessa maneira", diz Rubens Fernandes Jr., professor de fotografia da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado). "A narrativa criada com fotos e pequenos textos e a intimidade que desenvolve com o médico são comoventes e mudaram o olhar de outros fotógrafos", analisa.
Dr. Ceriani é retratado como profissional incansável, que abriu mão de dinheiro e conforto para atender quem que de outro modo não teria acesso a assistência.
"Smith tinha grande respeito por profissionais da saúde: sua mulher era enfermeira e ele mesmo precisou de cuidados. Achava que eram as pessoas mais nobres", diz Sam Stephenson, seu biógrafo.
O trabalho foi o primeiro de Smith após cobrir a Segunda Guerra. Em uma batalha, aos 27, ele foi atingido por um disparo e passou dois anos entre hospitais e cirurgias.