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SER MÉDICO • 45 RESENHA Ruído branco Guilherme Spadini* Medo da morte. Esse é o tema do mais novo filme do diretor americano Noah Baumbach, chamado Ruído Branco (White Noise), da Netflix. Não é um tema distante para nós, médicos, que lidamos com ele com alguma frequência. Mas medo da morte e medo de morrer são diferentes. O medo de viajar de avião, de ter câncer e de se contaminar na pandemia são exemplos comuns do medo de morrer. O medo da morte é um desespero, um pânico, que acomete algumas pessoas quando refletem sobre o fato de que irão morrer algum dia. Não depende de nenhuma ameaça real, doença ou perigo. Relaciona-se ao simples e absurdo fato de sermos seres conscientes de seu próprio fim. Fenômeno único e, segundo alguns pensadores, irreparavelmente insustentável — um erro cruel da natureza que nos condena a uma existência sem sentido. Eu tive uma criação religiosa, e lembro com nitidez do momento exato, nos primeiros anos da faculdade, em que me dei conta de que o medo da morte é tão real, tão óbvio, tão incrustado na experiência de ser humano, que uma resposta para ele seria o produto mais ubíquo, desejado e valioso da história. Não à toa, religiões existem desde que humanos existem e são instrumentos de poder — e, secundariamente, conforto — tão eficazes. Foi quando parei de crer. Anos depois, trabalhando com alunos de Medicina, descobri que esse é um fenômeno comum na faculdade. De repente, em uma aula de Bioquímica ou Fisiologia, um aluno tem uma epifania sobre a fria maquinaria que nos constitui e se torna um materialista, com resultados mais ou menos angustiantes, mas sempre transformadores. Ruído Branco, o filme, é baseado no livro homônimo de Don DeLillo, publicado em 1985. É considerado um dos marcos do pós-modernismo literário. A obra passa magistralmente por diversos temas relacionados à cultura contemporânea, como o consumismo, o culto a ídolos carismáticos, a transformação da linguagem e das consciências pela mídia, o [1] DIVULGAÇÃO/NETFLIX [1] fascínio pelo espetáculo e a substituição da realidade pela representação. Há uma sugestão, por trás de todo esse passeio crítico, de que tudo não passa de ruído branco. Um barulho constante que nos abafa, nos dessensibiliza, para que possamos viver na presença inescapável da finitude. Na obra, não há a resposta religiosa. O medo da morte é combatido com uma pílula ou com uma visita ao supermercado. Há um interessante paralelo com American Gods (2001), de Neil Gaiman, em que o novo panteão de deuses modernos inclui a mídia, o mercado e a tecnologia. E o tema recorre na obra de DeLillo, marcadamente, em Ponto Ômega, na qual violência e perda apresentam a morte como um ponto de fuga, algo mais natural e integrado que a posição quase antagonística que ela assume em Ruído Branco. Porém, o livro não era considerado uma obra inadaptável à toa. As três partes que o constituem ficam desconjuntadas no longa. A fidelidade ao texto, tema e estrutura do livro é louvável, mas não deixou espaço para que Baumbach fizesse um filme que fosse divertido ou, ao menos, engajante, o tempo todo. O final arrasta e, em muitos momentos, se perde. Sobram momentos geniais, nos diálogos, interpretações e direção, em um filme que, no todo, perde o brilho. Dependendo do seu gosto pessoal, pode ser intragável ou um dos grandes filmes do ano. Mas não deixa de ser uma obra de arte, cuidadosa e bem realizada, que vale a visita. E a reflexão.  *É médico psiquiatra, psicoterapeuta e professor da Escola de Filosofia The School of Life O barulho que abafa a inescapável presença da finitude

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