SER MÉDICO • 1 As prerrogativas médicas que garantem a qualidade no atendimento à saúde são constantemente atacadas, desde a elaboração da legislação. O Cremesp tem se mantido atento, promovendo o maior movimento em defesa da boa Medicina, com diversas vitórias judiciais SER MÉDICO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO Nº 101 • ANO XXV • 2023 WWW.CREMESP.ORG.BR ENTREVISTA Hiran Gonçalves, líder da Frente Parlamentar de Medicina CARREIRA Como é a revalidação de diplomas nos Estados Unidos TECNOLOGIA Inteligência artificial e as questões bioéticas HOBBY Médico cria laboratório gastronômico ATO MÉDICO LEI DO COMPLETA 10 ANOS
Lei do Ato Médico. Saiba mais em www.cremesp.org.br Se algo der errado, você vai parar nas mãos de um médico. Não espere dar errado. 10 anos da Lei do Ato Médico. Em qualquer procedimento médico, exija a presença de um médico. É seu direito. É pra sua segurança. É a lei. AS MINHAS AMIGAS FIZERAM. Cuidando da medicina, cuidando de você. Cuidando da medicina, cuidando de você. Imagem ilustrativa. Baseado em depoimentos reais.
SER MÉDICO • 1 NESTA EDIÇÃO AS CONQUISTAS MÉDICAS SA˜O GARANTIA DA ÉTICA Lei do Ato Médico, que estabeleceu as atribuições dos profissionais médicos, chega aos seus 10 anos e, embora tenhamos respaldo legal, não deixamos de assistir a movimentos de outras categorias profissionais que tentam, de diversas maneiras, usurpar as prerrogativas legais. O que temos visto é que, desde Hipócrates até os dias atuais, as resistências às atribuições médicas continuam e existirão ainda mais — se formos displicentes com o rigor da lei. Essa legislação é uma defesa da sociedade em relação a indivíduos que se propõem a divulgar, com alarde, e realizar, sem conhecimento adequado, procedimentos estéticos invasivos, entre outros. Então, mais que uma conquista da Medicina brasileira, impedir que não médicos exerçam nossas atribuições e determinar limites evitam sérias consequências à saúde pública. E disso não podemos abrir mão. Contamos no Legislativo com nossos representantes médicos, como Hiran Gonçalves, que teve notória participação na Frente Parlamentar da Medicina, quando era deputado e irá presidi-la novamente, desta vez, no Senado. Na entrevista exclusiva para Ser Médico, ele faz um balanço sobre a lei e enfatiza a importância das ações te, onde cerca de 80 médicos brasileiros se candidatam anualmente à recertificação. Lá, o processo para se tornar médico — idêntico para nativos e estrangeiros — envolve várias etapas, como relata, na seção Carreira Médica, o colega Leonardo Cruz Alexandre, que finaliza sua revalidação no Texas. A história dele nos indica que vale a pena investir no “sonho americano” quando o objetivo é expandir horizontes dentro da sua área de atuação. Já no caminho inverso, vindo de Taiwan ainda na infância, mostramos como o oncologista e professor da FMUSP, Lee Fu Kuang, aliou seu gosto pela Gastronomia com a Medicina. Ele mantém um laboratório que estimula as pessoas a comer melhor e não desperdiçar alimentos. Em suas aulas de Medicina Culinária, envolve os alunos com a importância do uso das técnicas da Gastronomia com viés científico, chamando a atenção para o tratamento integral do paciente. Como deve ser. Boa leitura! Wagmar Barbosa de Souza Coordenador da Assessoria de Comunicação coordenadas para garantir nossas conquistas. Por sua vez, o Cremesp vem tentado, incessantemente, impedir, na Justiça, os abusos cometidos por infratores da lei, ingressando com inúmeras representações na esfera judicial. E, como mostramos no dossiê Ato Médico desta edição, temos tido bons resultados com liminares e sentenças em tribunais superiores, suspendendo atividades irregulares de profissionais de outras categorias da saúde. Este é o maior movimento em defesa do Ato Médico no Estado e é um dos mais importantes pilares da atual gestão do Cremesp. O nosso intuito é sempre defender o respeito à legislação vigente, atuando com licitude, e valorizar a qualidade da assistência à saúde, como preconiza o Código de Ética Médica. Com o olhar atento à formação médica, lançamos foco também no processo de revalidação de diplomas estrangeiros para interessados em atuar como médico no Brasil. O Cremesp defende que a revalidação deve ser feita com critério científico, como propõe o Revalida, que após mais de uma década, protege a sociedade da má prática médica e do exercício ilegal da Medicina. Exames semelhantes ao Revalida são exigidos em outros países e, nos Estados Unidos, especialmenA [1] FOTO: OSMAR BUSTOS [1]
2 • SER MÉDICO Certificado no escopo: Serviços cartoriais relativos à Pessoa Física e Pessoa Jurídica; serviços judicantes realizados na sede do Cremesp, relativos às atividades administrativas para a tramitação de sindicâncias e de processos ético profissionais; manutenção dos dados cadastrais dos médicos; intermediação da isenção de rodízio municipal de veículos; atendimento telefônico e presencial na sede e delegacia da Vila Mariana, referente aos serviços cartoriais. EXPEDIENTE CONSELHEIROS Altino Pinto, Angelo Vattimo, Camila Cazerta de Paula Eduardo (licenciada), Chien Yin Lan, Christina Hajaj Gonzalez, Cynthia Dantas Kurati, Daniel Kishi, Edoardo Filippo de Queiroz Vattimo (licenciado), Eliane Aboud, Everaldo Porto Cunha, Fernando José Gatto Ribeiro de Oliveira, Flavia Amado Bassanezi, Flávia Bellentani Casseb, Francisco Carlos Quevedo, Henrique Liberato Salvador, Irene Abramovich, Joaquim Francisco de Almeida Claro, José Gonzalez, Juliana Takiguti Toma, Julio César Zorzin, Lucio Tadeu Figueiredo, Lyane Gomes de Matos Teixeira Cardoso Alves, Marcello Scattolini (licenciado), Maria Alice Saccani Scardoelli, Maria Camila Lunardi, Mário Antonio Martinez Filho, Mario Cezar Pires, Mario Jorge Tsuchiya, Mario Mosca Neto, Mirna Yae Yassuda Tamura, Mônica Yasmin Pinto Corrado, Paula Yoshimura Coelho, Paulo Tadeu Falanghe, Pedro Sinkevicius Neto, Regina Maria Marquezini Chammes, Rodrigo Costa Aloe, Rodrigo Lancelote Alberto, Rodrigo Souto de Carvalho, Silvio Sozinho Pereira, Tatiana Regina Criscuolo, Wagmar Barbosa de Souza CONSELHO EDITORIAL Irene Abramovich, Angelo Vattimo, Wagmar Barbosa de Souza, Maria Camila Lunardi, Pedro Sinkevicius Neto e Rodrigo Souto SER MÉDICO Coordenador do Departamento de Comunicação: Wagmar Barbosa de Souza Chefe da Assessoria de Comunicação: Marcos Michelini Líder da Assessoria de Comunicação: Júlia Remer Editora: Nara Damante Subeditora: Aglaé Silvestre Colaboradores: Concília Ortona Reyes, Ivolethe Duarte, Fátima Barbosa e Vitor Bastos Fotografia: Osmar Bustos Designer Gráfica: Jade Longo Administrativo: Bruno Malheiro e Leonardo Costa Estagiário: Lucas Cruz Impressão: Plural Indústria Gráfica Tiragem: 176.000 exemplares. Periodicidade trimestral Opinião e conceitos emitidos em matérias assinadas não refletem necessariamente a opinião da Ser Médico ISSN: 1677-2431 Imagem da capa: doomu/Istock CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO CAT - Central de Atendimento Telefônico: (11) 4349 - 9900. Atendimento na sede: Rua Frei Caneca, 1.282 — Consolação (das 9h às 18 horas) E-mail: sermedico@cremesp.org.br DIRETORIA Presidente: Irene Abramovich Vice-Presidente: Maria Alice Saccani Scardoelli 1° secretário: Angelo Vattimo 2ª secretária: Maria Camila Lunardi Tesoureiro: Pedro Sinkevicius Neto Corregedor: Rodrigo Lancelote Alberto Vice-Corregedora: Maria Alice Saccani Scardoelli (interina) Departamento de Comunicação: Wagmar Barbosa de Souza Delegacias Metropolitanas: Flavia Amado Bassanezi Delegacias do Interior: Rodrigo Souto de Carvalho Departamento de Fiscalização: Daniel Kishi Departamento Jurídico: Joaquim Francisco Almeida Claro
ÍNDICE 6 ENTREVISTA | HIRAN GONÇALVES O líder da Frente Parlamentar Mista de Medicina defende que lei do Ato Médico trouxe avanços, mas precisa de aprimoramentos 4 CARTAS & NOTAS 11 ATO MÉDICO | HISTÓRIA A defesa das prerrogativas médicas percorreu um longo caminho até chegar à atual legislação 16 ATO MÉDICO | PANORAMA Cremesp tem obtido vitórias em várias ações judiciais no combate ao exercício ilegal da Medicina 26 CARREIRA MÉDICA Como funciona a revalidação de diplomas médicos nos Estados Unidos, onde nativos e estrangeiros passam pelas mesmas provas 29 TECNOLOGIA O impacto ético do uso da Inteligência Artificial na Medicina 34 OPINIÃO A abertura de novas escolas médicas e a qualidade do ensino 36 CRÔNICA | PEDRO SINKEVICIUS NETO Já passou a Páscoa, mas ainda dá tempo para uma boa história de Natal TURISMO A Lituânia, uma das três repúblicas bálticas, esconde belezas naturais e arquitetônicas pouco conhecidas pelos turistas 41 RESENHA | GUILHERME SPADINI Baseado em um dos marcos do pósmodernismo na literatura americana, o filme Ruído Branco trata da inescapável finitude 45 AGENDA CULTURAL A genialidade artística de Picasso em uma exposição imersiva digital, com mais de 200 obras 46 FOTOPOESIA Mário Quintana 48 38 HOBBY Médico faz da gastronomia um grande laboratório científico de prevenção a doenças 2O ATO MÉDICO | EM FOCO A aplicação de um exame para formandos de escolas do exterior, como o Revalida, é o caminho para salvaguardar a qualidade da Medicina 31 MEDICINA NO MUNDO Notas sobre Medicina e saúde
4 • SER MÉDICO CARTAS & NOTAS Cartas para: sermedico@cremesp.org.br ou Rua Frei Caneca, 1.282, Consolação, São Paulo - SP — CEP 01307-002. A Ser Médico se reserva o direito de publicar trechos das mensagens. Informe o nome completo e número de CRM, se for médico/a. ERRATAS DA EDIÇÃO Nº 100 • No texto Atenção ao preenchimento da Declaração de Óbito, publicado na página 20, há um box com o título O que o médico não deve fazer no documento, em que houve um equívoco. O correto é: "o médico deve preencher os dados de identificação na Declaração de Óbito (DO) com base em um documento da pessoa falecida”. • Na matéria Medicina Preventiva: velho nome, novos conceitos, desafios perenes, na página 18, a foto publicada corresponde à capa da sexta edição do livro Preventive Medicine and Hygiene de Milton Rosenau, da Harvard, e não da primeira edição do clássico de Leavell e Clark, de 1953, conforme o mencionado. [1] PINSTOCK/CAPTURA DE TELA DO WHATSAPP DO CREMESP [1] NOVO CANAL OFICIAL DO CREMESP, VIA WHATSAPP, LEVA INFORMAÇÕES IMPORTANTES AOS MÉDICOS O Cremesp está disponibilizando um serviço digital, via WhatsApp Institucional, aos profissionais de Medicina do Estado de São Paulo, para orientar e esclarecer dúvidas frequentes sobre as principais iniciativas do Conselho, de maneira rápida e clara. O WhatsApp do Cremesp oferece informações sobre: - Uso e troca de senha da Área do Médico - Denúncias aceitas pelo Conselho - Processos Ético-Profissionais e Sindicâncias - Pagamento de boletos de anuidade - Inscrição de Pessoa Física e Jurídica O canal também é utilizado para o envio de comunicados oficiais do Conselho, novidades e eventos, entre outros. Adicione o número (11) 4349-9900 em seus contatos do celular e envie uma mensagem para ter acesso ao WhatsApp do Cremesp.
SER MÉDICO • 5 No artigo Inteligência Artificial, Medicina e Bioética (pág. 29), o trecho do 5º parágrafo foi totalmente escrito por Inteligência Artificial, a pedido do autor. ISENÇÃO DO RODÍZIO REGULAR É AMPLIADA PARA MÉDICOS MORADORES DA GRANDE SÃO PAULO Os médicos moradores da Região Metropolitana de São Paulo passaram a ter direito à isenção do rodízio veicular regular, conforme o comunicado CET/SP nº 15/2022. Anteriormente, apenas médicos que moravam na capital paulista eram elegíveis para o benefício, como descrito na Lei Municipal nº 12.632/98. O rodízio para veículos em São Paulo acontece de segunda a sexta-feira (exceto feriados), das 7h às 10h, e das 17h às 20h. A autorização é válida por dois anos e contempla os médicos da Grande São Paulo que trabalham no serviço público de saúde da capital. O profissional deve estar devidamente cadastrado no Cremesp, pertencer ao corpo clínico de instituição de saúde pública (municipal, estadual ou federal) e ter o veículo registrado na cidade de domicílio, além de atender a mais algumas condições legais, disponíveis na Área do Médico do site do Cremesp (www.cremesp.org.br). Municípios da Região Metropolitana de São Paulo A CET prevê isenção para médicos moradores de Arujá, Barueri, Biritiba Mirim, Caieiras, Cajamar, Carapicuíba, Cotia, Diadema, Embu, Embu-Guaçu, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato, Franco da Rocha, Guararema, Guarulhos, Itapecerica da Serra, Itapevi, Itaquaquecetuba, Jandira, Juquitiba, Mairiporã, Mauá, Mogi das Cruzes, Osasco, Pirapora do Bom Jesus, Poá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Salesópolis, Santa Isabel, Santana do Parnaíba, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, São Lourenço da Serra, Suzano, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista. Área do Médico Saiba mais na Área do Médico do site do Cremesp, na aba Isenção do Rodízio Regular, e como proceder às ações solicitadas. Em segundos, o sistema realiza a validação dos dados e emite a resposta. Se for aprovada, a vigência da isenção é iniciada no mesmo dia. Mais informações Dúvidas podem ser solucionadas na Seção de Cadastro, pelo e-mail rod@cremesp.org.br, ou pela Central de Atendimento Telefônico, no tel. (11) 4349-9900, das 8h às 20h, de segunda a sexta-feira. ISENÇÃO REGULAR X TEMPORÁRIA O médico que já havia solicitado a isenção temporária de rodízio, mas agora está elegível para a isenção regular, deve fazer o cadastro para essa autorização permanente por dois anos, obtendo resposta imediata. Para os médicos que não se enquadram nos requisitos da isenção regular, a temporária também permanece disponível para cadastramento na Área do Médico. [2] RPAROBE/ISTOCK [2] ISENÇÃO TEMPORÁRIA DO RODÍZIO TERÁ VALIDADE ESTENDIDA ATÉ 31/12/2023 A modalidade de isenção temporária de rodízio, criada pela Prefeitura Municipal de São Paulo para atender às demandas advindas da pandemia de covid-19, para médicos moradores da Região Metropolitana, foi estendida até 31/12/2023. A medida autoriza profissionais de saúde a circularem pela capital paulista, em caráter excepcional e temporário, nos dias de rodízio. O cadastro de novos médicos pode ser feito na Área do Médico, na opção Isenção de Rodízio Temporária. Ao final, será exibida uma mensagem informando que a isenção temporária foi cadastrada e que será enviada ao órgão municipal competente, para registro. Quem já se cadastrou na Área do Médico, em 2022, não precisa renovar este ano. Autorização regular é renovada a cada dois anos
6 • SER MÉDICO tivo nas pautas relacionadas à Saúde, em geral, e à Medicina, em particular, Hiran Gonçalves (PP-RR) é um dos principais representantes dos médicos no Parlamento. Seu protagonismo na Medicina vem desde os tempos em que foi presidente no Conselho Regional de Medicina do Estado de Roraima, por duas gestões. Médico oftalmologista em Boa Vista (RR), nascido em Tefé (AM), exerce seu trabalho concomitantemente às atividades parlamentares, depois de 25 anos como médico legista no Instituto Médico Legal (IML) de Roraima. É membro da Academia Americana de Oftalmologia e foi coordenador regional da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), presidente da UniCred e professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Após um mandato na Câmara dos Deputados como deputado federal, em 2015, com amplo envolvimento nas questões da Lei do Ato Médico, ele foi reeleito e tornou-se presidente da Frente Parlamentar Mista de Medicina. Teve ainda decisiva participação na Comissão Externa de Enfrentamento à Covid-19, reunindo esforços conjuntos para a rápida liberação de financiamentos, visando ao atendimento à população durante o ápice da pandemia. Agora em seu primeiro mandato como senador, na gestão 2023-2031, ele pretende preservar as conquistas dos médicos, ampliar e aperfeiçoar algumas leis que visem à saúde da população e à defesa dos atos privativos dos médicos. Quer usar a argumentação e o convencimento da maioria dos senadores para conseguir a aprovação de projetos para salvaguardar a Medicina e os atos privativos dos médicos, entre outros temas em benefício da sociedade. A ENTREVISTA | HIRAN GONÇALVES “Temos mais a comemorar do que a lamentar com a Lei do Ato Médico” Nara Damante
SER MÉDICO • 7 [1] DIVULGAÇÃO/HIRAN GONÇALVES [1] Ser Médico – A Lei do Ato Médico (nº 12.842), que tem por objetivo defender a Medicina e proteger a sociedade, completa 10 anos em 10 de julho de 2023. Qual sua visão sobre o benefício desta legislação? Ela é eficaz? Hiran Gonçalves — Participei desta luta ainda no Conselho Regional de Medicina do Estado de Roraima (CRM-RR), do qual fui presidente por duas gestões e estreitamos relações com o Cremesp. As entidades médicas gastaram muita energia para aprovar a Lei do Ato Médico, em duas frentes: a Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM) e o Ato Médico em si. E no decorrer da tramitação da lei, profissionais de outras áreas da Saúde aproveitaram para regulamentar e estabelecer atividades privativas dessas categorias. A Lei é muito importante para o médico e existem agora atos privativos e outros, que a proposição não deixou claro. Mas os tribunais superiores têm reconhecido o que não foi consignado como atividades do médico. Então, temos mais a comemorar do que a lamentar sobre a aprovação da Lei do Ato Médico. Nossa relação com profissionais da saúde é dinâmica e no decorrer dela abriram-se algumas brechas. Participei de uma audiência na Câmara, por exemplo, onde se discutia a regulamentação da profissão de esteticista. E aí o debate envolveu procedimentos minimamente invasivos. Atividades com botox, por exemplo, estavam sendo feitas ilegalmente, por alguns profissionais inescrupulosos e mal intencionados e rechaçamos porque se trata de uma prerrogativa médica. Na minha primeira legislatura na Câmara também havia um projeto de lei que regulamentava algumas profissões, como as de terapeuta ocupacional e psicólogo, e as qualificava para a perícia do INSS. Ocupei a relatoria e consegui, com muito trabalho, evitar este projeto porque seria um precedente perigoso para a saúde da população. Ser — Muitos apontam que os vetos ao 4º artigo (atividades privativas dos médicos) comprometeram a lei, facilitando a invasão de outros profissionais da saúde. Como resguardar a atividade profissional do médico? Gonçalves — Há um esforço, no Legislativo, de profissionais médicos apresentando projetos que venham aperfeiçoar essa lei. Exemplo: uma coisa que nos fragiliza muito é o desrespeito ao Revalida. Não era uma legislação de Estado, ela mudava ao longo do tempo. Os parlamentares conseguiram aprovar o marco legal do Revalida, com provas duas vezes ao ano, em instituições públicas, para quem se formou em Medicina no exGonçalves: esforços para aperfeiçoar a lei aprovada em 2013
8 • SER MÉDICO terior. Isso dá a segurança de que os profissionais brasileiros ou estrangeiros passaram por uma avaliação criteriosa. Toda hora aparecem defensores de um projeto de lei mirabolante querendo tirar nossas prerrogativas. No Parlamento, tem até uma Frente Parlamentar da Optometria e uma Sociedade de Optometria, que confundem a população. A Oftalmologia trabalha muito para conscientizar a sociedade e sensibilizar o Parlamento de que o exame oftalmológico e a refração, feitos por um técnico, deixam passar doenças muito graves, que podem ser detectadas por exames oftalmológicos feitos por um oftalmologista. Então, refração é ato privativo do médico oftalmologista. Temos de trabalhar, dentro do Parlamento, para impedir que as leis que regulamentam esse tipo de atividade afastem a saúde ocular do povo brasileiro. Precisamos agir com rigor, inclusive dando ciência à Polícia sobre o exercício ilegal da Medicina e implementando ações judiciais para cercear atividades feitas por profissionais não habilitados. Exercer a Medicina é muito sedutor, mas se trata de um curso longo e difícil. Sabemos que o padrão ouro é a Residência e há poucas vagas e muitos médicos. Deveríamos ter remuneração adequada para os residentes. Enfim, há muitas pautas importantes a discutir. Ao longo dos meus oito anos de mandato como deputado federal, sempre defendi as boas práticas e a autonomia do médico. Ser — O art. 5º da Constituição, em seu inciso XIII, diz que: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”, ou seja, esta será uma batalha judicial contínua para que a lei do Ato Médico seja efetivamente cumprida? Gonçalves — Temos que preservar o que conquistamos. A Medicina não se faz só com médicos, mas também com ações multiprofissionais. Só que é preciso que as atividades de cada um sejam bem definidas. Isso é uma luta de todos, das entidades médicas, tanto Conselhais, quanto associativas e sindicais. É preciso atuar de forma coordenada. Estamos agora reativando a Frente Parlamentar da Medicina, que eu participava quando era deputado. Ser — Qual foi sua linha de atuação nesta Frente em relação aos desdobramentos da lei do Ato Médico e das pautas ligadas à Saúde e à Medicina? Como esses temas serão tratados em sua nova atribuição no Senado? Gonçalves — Eu presidia a Frente Parlamentar da Medicina na Câmara e, com a minha vinda para o Senado, nós a reativamos como uma Frente Mista de senadores e deputados, em março. Trabalhamos para a formação do médico e a não proliferação de novas escolas sem condições de ensino adequado. Somos contra criar novas vagas nas escolas por meio de liminares e discutimos uma série de pautas com o Supremo Tribunal Federal. Também fundamos o Instituto Brasil de Medicina (IBDM), que é uma instituição privada que faz um elo de ligação entre a Frente Parlamentar Mista de Medicina e as entidades médicas, com quem conversamos periodicamente. Tínhamos na Câmara dos Deputados, na Comissão de Seguridade Social, mais de 1,5 mil processos com alguma relação com a atividade médica. Então, temos que estar no Parlamento sempre vigilantes para aperfeiçoar os marcos legais, atuando em projetos de lei, como o que garante às mulheres o direito de indicar acompanhante durante consultas e exames para os quais haja necessidade de sedação, em algumas especialidades médicas. Isso está muito ligado com a questão dos maus profissionais que praticam atos sexuais em centros cirúrgicos contra pacientes. Tem esse projeto de lei, que tramitou na Câmara e veio para o Senado, e suscita muita discussão a respeito porque, às vezes, uma pessoa da família não está preparada para encarar o que acontece em uma cirurgia. Mas são temas importantes que iremos enfrentar nesta legislatura, com a participação dos dez médicos senadores. Vou ENTREVISTA | HIRAN GONÇALVES Exercer a Medicina é muito sedutor, mas se trata de um curso longo e difícil. Sabemos que o padrão ouro é a Residência e há poucas vagas e muitos médicos
SER MÉDICO • 9 assumir novamente a presidência desta Frente e pretendemos usar a argumentação e o convencimento da maioria para conseguirmos aprovação de projetos para salvaguardar nossa profissão e, por consequência, cuidar da saúde e da vida da população. Ser — Quando detectadas infrações em relação ao Ato Médico, os Conselhos têm impetrado medidas administrativas e judiciais para defender os interesses da profissão e dos brasileiros, construindo uma cultura no universo jurídico. Este é um caminho efetivo até conseguirmos aprovar novas leis? Como podemos avançar? Gonçalves — As sociedades de especialidades e os Conselhos Federal e os Regionais de Medicina têm atuado e é responsabilidade de todos aperfeiçoarmos a legislação. O Cremesp tem sido muito ativo na apropriação do Ato Médico e rigoroso com as boas práticas médicas. Temos que pensar em uma lei também para que haja provas para egressos das escolas de Medicina, talvez durante ou após o curso. Deve ser uma discussão ampla porque não devemos punir só o mau aluno, mas também a escola que oferece formação deficiente. Ser — Tem informações de como essas questões são discutidas em outros países? Há algum modelo internacional que pode ser seguido/adaptado no Brasil? Gonçalves — Nos Estados Unidos, por exemplo, a Optometria é legal e a Enfermagem tem algumas atividades ampliadas em relação ao Ato Médico. Mas devemos considerar as necessidades, demandas, perfis epidemiológicos e legislações de cada país. Apesar disso, sempre discutimos formação médica com o Conselho Federal de Medicina (CFM), que tem interface com outros Conselhos da América Latina; assim como a Associação Médica Brasileira (AMB), integra a Confederação Médica Ibero-Latina-Americana e do Caribe (Confemel), que têm norteado nossas ações no Parlamento. Ser — O projeto de lei nº 7.419/2006, que já passou pelo Senado e tramita na Câmara dos Deputados, cria um novo marco legal para o funcionamento de planos de saúde no Brasil, cujo relator era o senhor. Como vê a viabilidade para as questões sobre a exigência de contrato com as operadoras de planos e o reajuste periódico de honorários para os médicos? Gonçalves — Este é um grande desafio. Ao longo do tempo, não tivemos o aperfeiçoamento da lei, mas atualizações por medidas provisórias. Temos que discutir o tema sempre pelo tripé: operadoras de saúde, médicos e usuários. Fiz um relatório, ouvi muito as partes envolvidas, e as forças ficaram mais ou menos equilibradas, amortizando o aumento após os 59 anos de idade e estimulando o tratamento de doenças e atividades da Saúde. Recriei uma modalidade de um plano ambulatorial de entrada — acessível para novos usuários, especialmente jovens, com baixa sinistralidade — na Saúde Suplementar para tentar equacionar a situação com os gastos dos pacientes crônicos. Ainda haverá muitos debates na tramitação no Senado, mas o projeto pode desafogar a atenção primária do SUS, que nos serviços bem organizados consegue resolver 80% dos problemas da Saúde. Se conseguirmos reduzir a hipertensão e a diabetes, diminuiremos a demanda pela média complexidade e pelos serviços de Cardiologia. Em relação aos proventos dos médicos, a Saúde Suplementar é um negócio privado, com regulamentação que deve ser aperfeiçoada, para garantirmos remuneração adequada. Os planos de saúde estão se verticalizando, “pejotizando” a contratação, com vínculos cada vez mais frágeis com os médicos. Precisamos de mecanismos para contrapor isso. É um desafio porque se trata de um mercado muito forte e poderoso. Ser — Tem aumentado o número de médicos formados fora do Brasil e que não querem fazer Revalida para atuar no País. Durante a pandemia, por exemplo, foram concedidos registros provisórios de médicos em algumas localidades (como Amapá), obtidos via judicial, com a ajuda da Associação Internacional para Profissionais de Saúde. Os registros foram devidamente cassados pelo TRF neste ano, reafirmando a exigência legal do Revalida. Como vê essa questão? Gonçalves — Houve uma tentativa de trazer médicos sem revalidação, mas não deixamos acontecer. Durante esse período, fizemos uma
10 • SER MÉDICO [2] FOTO: OSMAR BUSTOS ENTREVISTA | HIRAN GONÇALVES Comissão Externa de Enfrentamento à covid-19, única comissão da Câmara em funcionamento durante o período da pandemia, tentando preservar vidas com projetos que garantiam financiamentos e liberação de tudo o que era necessário para combater a tragédia, de maneira rápida. Criamos vários projetos de leis, sendo que fui autor de uns e relator de outros e nós conseguimos, na Câmara, apresentar ações para enfrentar a pandemia. Ser — Que lições a pandemia lhe trouxe? Gonçalves — Estive muito doente e vários colegas deputados também, precisaram ir para a UTI. Ficou bastante claro que o Parlamento, pela sua representatividade, é um ator muito importante na construção de políticas públicas porque temos nele a representatividade de todos os segmentos da sociedade brasileira. Foi um trabalho importante de engajamento para que déssemos respostas rápidas, que se faziam necessárias naquele período porque vivemos um período que nunca imaginei passar. Ser — O que pensa a respeito da retomada do Programa Mais Médicos? Qual sua opinião/proposta para tentar equacionar a ausência de médicos formados no Brasil nas regiões mais distantes e carentes do País? Gonçalves — Houve alterações no modelo de contratação do Mais Médicos com o Médicos pelo Brasil, melhorando a remuneração, e tentamos estimular que os profissionais fossem para os lugares remotos do país. Mas a mudança de nome (Mais Médicos ou Médicos pelo Brasil) é só uma questão política. O importante é que não vamos mais aceitar intercambistas sem qualificação, que não passem no Revalida e não tenham diploma revalidado. Precisamos priorizar os médicos brasileiros com CRM ativo, ter plano de cargos e salários adequado e que o governo brasileiro garanta uma estrutura para que haja suporte tecnológico mínimo para fazer uma Medicina com segurança. Se não há estrutura para o médico, não há como atuar. É preciso mais que boa vontade do profissional para oferecer atendimento médico à população. [2] Liderando novamente a Frente Parlamentar Mista de Medicina, Gonçalves tem novos desafios no Senado
[1] BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE DE BOLONHA, DOMÍNIO PÚBLICO, VIA WIKIMEDIA COMMONS [1] e Hipócrates aos dias atuais, a trajetória do reconhecimento do Ato Médico enfrentou desde falta de conhecimentos e preconceitos a falhas em regulamentações. Algumas resistências permanecem, mesmo com as evidências apontando para o fato de que procedimentos médicos devem ser de exclusiva competência de quem seguiu a longa e extensa formação dos cursos de graduação e Residência em Medicina. D De Hipócrates à Lei do Ato Médico DOSSIÊ: Ato Médico | HISTÓRIA Pode-se dizer que a luta pela garantia das prerrogativas dos médicos começou lá atrás, no século 5 a.C, com o surgimento da Medicina hipocrática, na Grécia. Com a separação da prática médica das crenças sobrenaturais dos tempos primitivos, a Medicina percorreu um longo e polêmico caminho até chegar às leis atuais que regulamentam a profissão. Entre avanços e recuos, a Medicina só foi institucionalizada a partir da Idade Média, após a SER MÉDICO • 11 Miniatura que retrata a Escola Médica Salernitana, em cópia do Cânone de Avicena
fundação da escola de Salerno — calcula-se que no século 9 —, e das primeiras universidades europeias. Até então, o ensino da arte médica era informal e se fazia de mestre a aluno, por gerações, como consta do Juramento de Hipócrates. Contudo, apesar de alguns procedimentos cirúrgicos serem realizados por médicos, a cirurgia ficou em segundo plano durante muitos séculos e era executada pelos cirurgiões-barbeiros, que não tinham qualquer formação acadêmica. A Universidade de Paris chegou ao ponto de proibir médicos de praticá-la. O primeiro exame público para credenciamento de médicos em DOSSIÊ: Ato Médico | HISTÓRIA 12 • SER MÉDICO exercício ocorreu na cidade de Bagdá, no ano de 931 (século 10), com o comparecimento de 860 candidatos, segundo historiadores. A Medicina árabe, no Oriente Médio, estava, então, em seu apogeu. Porém, apenas no século 19, com a descoberta da anestesia geral e dos microorganismos, e o surgimento da antissepsia, a cirurgia foi reintegrada à Medicina e adquiriu o status de uma das mais importantes especialidades médicas. Também, gradualmente, ao longo da história, a Medicina foi se separando legalmente de outras profissões da área da Saúde. Em relação à Farmácia, por exemplo, essa desconexão iniciou-se a SÉCULO 5 A.C Com Hipócrates, Medicina distingue-se de crenças sobrenaturais SÉCULO 9 Surge a primeira escola de Medicina, em Salerno SÉCULO 10 Primeiro credenciamento de médicos é realizado em Bagdá SÉCULO 19 Com a descoberta da assepsia, a cirurgia é reintegrada à Medicina [2] [4] [3] LINHA DO TEMPO partir da Idade Média, com características próprias em cada país. Já a vinculação da Odontologia à Medicina é menos evidente. Também remontando à Antiguidade, a extração de dentes nunca foi considerada uma atividade médica e, sim, dos cirurgiões-barbeiros, até o surgimento da Oncologia. A Enfermagem, assim como as demais profissões da Saúde, possui uma interface com a Medicina, tendo maior ou menor autonomia de ação em sua área de trabalho, dependendo da legislação e regulamentação de cada país. No Brasil A maior presença de médicos no [2] PHILSIGIN/ISTOCK [3] RECONSTRUÇÃO DIGITAL DA CIDADE/ DAN LEWANDOWSKI [4] BETTMANN/GETTYIMAGES
SER MÉDICO • 13 Brasil só começou a ocorrer no século 19. Antes, no período colonial, eram pouquíssimos e divididos em três categorias: cirurgiões-barbeiros, cirurgiões aprovados e cirurgiões diplomados. Dentre estes, predominavam os cirurgiões-barbeiros. Os jesuítas e os boticários tiveram, também, papel importante no atendimento médico à população - indígenas, pessoas escravizadas e colonizadores. Havia, ainda, o barbeiro, que era o profissional mais humilde, muito procurado pela população mais pobre. Além do corte de cabelo e barba, fazia sangria, aplicava ventosas, sanguessugas e clisteres, lancetava abscessos e fazia curativos. Os partos eram feitos pelas "comadres" (parteiras sem nenhum preparo) e por toda parte espalhavam-se os curandeiros e charlatães em geral (Santos Filho, 1991, pp. 52-67). Apenas com a vinda de d. João 6º a situação começou a se modificar, com a criação, em 1808, de duas escolas médico-cirúrgicas, primeiramente na Bahia e, meses depois, no Rio de Janeiro. Porém, apenas a partir de 1832, quando elas foram transformadas em faculdades de Medicina, começaram, realmente, a formar médicos brasileiros. Aos poucos, eles foram substituindo os cirurgiões- -barbeiros e os curandeiros. Muitas famílias ricas, nesse período, mandavam seus filhos estudarem Medicina em países europeus. O número de médicos no Brasil só aumentou no século 20, com a criação de novas escolas médicas. Em 1900, havia no País apenas três faculdades de Medicina e, em 1950, eram 15, formando cerca de 2 mil médicos por ano. Até então, os médicos se viam como profissionais liberais, sem perceber a necessidade de se organizarem como categoria profissional. A primeira medida nesse sentido foi a fundação da Associação Médica Brasileira (AMB), em 1951. Mas somente com a criação dos Conselhos de Medicina (Federal 1808 São criadas as duas primeiras escolas médico-cirúrgicas 1950 Brasil conta com 15 faculdades de Medicina 1957 Criação dos Conselhos de Medicina, Federal e Regionais 2013 Após 10 anos de tramitação, Lei do Ato Médico é aprovada 2002 Apresentado o projeto de lei regulamentando a profissão médica [5] [6] [7] BRASIL [5] REPRODUÇÃO/ACERVO HISTÓRICO [6 E 7] CAPTURA DE TELA DE DOCUMENTO DO SITE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS
14 • SER MÉDICO DOSSIÊ: Ato Médico | HISTÓRIA e Regionais), em 1957, os médicos passaram a ter um fórum adequado para discutir as questões éticas da profissão. Lei do Ato Médico O desenvolvimento da Medicina e o crescimento da população, que levaram a uma maior demanda por serviços públicos e privados, fizeram com que surgissem várias outras profissões da Saúde, além da Medicina, Farmácia, Odontologia e Enfermagem. A interface entre elas, embora conduzida com respeito pelas respectivas entidades, provocou o surgimento de conflitos, que perduram até hoje. Para evitar a invasão da Medicina por não habilitados, as entidades médicas deflagraram, nas últimas décadas, uma intensa luta pelos atos privativos dos médicos, que culminou na aprovação da Lei 12.842/13, conhecida como Lei do Ato Médico. Foram mais de 10 anos de muita mobilização, intensificada a partir da apresentação do Projeto de Lei 268, de 2002, que serviu de base para a regulamentação do exercício da Medicina. O texto define as prerrogativas dos médicos e aquelas que podem ser compartilhadas com as demais 14 categorias da Saúde. Para as entidades médicas, a regulamentação do exercício da Medicina não prejudica categorias profissionais ou cerceia direitos. Em junho de 2006, as entida- [8] [9] Defesa dos atos privativos dos médicos culminou na aprovação da lei, que tramitou por mais de dez anos na Câmara e no Senado A interface entre as profissões da Saúde provocou o surgimento de conflitos, que perduram até hoje [8 E 9] FOTO: OSMAR BUSTOS
SER MÉDICO • 15 des médicas entregaram ao então presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, 1,5 milhão de assinaturas em prol da proposta. Após uma série de audiências públicas, o projeto foi aprovado em 2006, mas, como é de praxe, tramitou em diversas comissões. Na Câmara dos Deputados, o texto foi aprovado em 2009 — sempre com intensa pressão das entidades médicas —, porém, com modificações e, por isso, retornou ao Senado em 2010. Em 2012, foi aprovado na importante Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Após passar por outras comissões, o projeto seguiu para o Plenário, onde foi aprovado, sendo sancionado, com alguns vetos, pela então presidente da República, Dilma Roussef, em 10 de julho de 2013. O texto especifica todos os atos privativos dos médicos. Entretanto, mesmo com a Lei do Ato Médico, nos últimos anos tem havido uma gigantesca invasão das prerrogativas médicas por profissionais sem habilitação. Tratamentos complexos, como oncológicos, e procedimentos aparentemente inofensivos, como alguns estéticos, estão sendo banalizados e ofertados indiscriminadamente à população por não médicos. Atento e preocupado, o Cremesp tem como prioridade expandir suas ações e adotar medidas mais austeras em prol da sociedade e da boa Medicina. Com este objetivo, a entidade criou, em 2021, a Comissão de Defesa do Ato Médico, em parceria com o Poder Judiciário e o Ministério Público. A meta é concentrar o recebimento de denúncias de invasão ao Ato Médico, exercício ilegal da profissão, além de complicações e intercorrências por procedimentos malsucedidos. Para acolher as denúncias, foi criado um email exclusivo: comissaoatomedico@ cremesp.org.br. Ao longo dos últimos dois anos, o Cremesp ingressou, também, com diversas ações que não se limitaram à esfera judicial, acionando, além do Ministério Público Estadual e Federal, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Polícia Judiciária (Polícia Civil), o Conselho Regional de Odontologia e outros Conselhos profissionais. Por meio dessas iniciativas, a atual gestão vem obtendo, desde 2018, diversas liminares para impedir a invasão da Medicina por parte de profissionais não médicos, com graves consequências à saúde da população, frequentemente relatadas pela imprensa. Fonte bibliográfica REZENDE, J. M. O Ato Médico Através da História. In: À sombra do plátano: crônicas de história da medicina [online]. São Paulo: Editora Unifesp, 2009, pp. 111-119 vitória na aprovação da lei não foi suficiente para coibir invasões de outros profissionais da saúde nas prerrogativas médicas [11] [10] Projeto de lei foi sancionado com alguns vetos, em 2013, após intensa pressão das entidades médicas [10 E 11] FOTO: OSMAR BUSTOS
[1] Um dos mais importantes pilares da atual gestão do Conselho de Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) são as ações judiciais, extrajudiciais e administrativas, promovidas no combate ao exercício ilegal da Medicina. Desde o início dessa gestão, por meio de uma firme atuação da Comissão de Defesa do Ato Médico, coordenada pelo diretor 1º secretário, Angelo Vattimo, a Autarquia vem obtendo inúmeras vitórias na Justiça, conseguindo barrar a atuação de profissionais não habilitados na execução de procedimentos restritos à área médica. E, dessa forma, vem salvaguardando a saúde dos pacientes, muitas vezes vítimas de danos irreversíveis em decorrência de imperícias praticadas por não médicos. Cremesp tem feito da defesa da Lei do Ato Médico (12.842/13) uma atividade incessante junto à Justiça, tendo como foco impedir que profissionais não habilitados executem procedimentos que invadem as prerrogativas médicas. As ações do Conselho contra o exercício ilegal da Medicina têm impedido efetivamente que profissionais de outras áreas possam exercer atividades restritas aos médicos, como preco16 • SER MÉDICO DOSSIÊ: Ato Médico | PANORAMA [1] CAMERAVIT/ISTOCK O Cremesp promove o maior movimento em defesa da Lei do Ato Médico no Estado
SER MÉDICO • 17 [2] CREMESP/BRICK niza a lei. Foram centenas de mobilizações, incluindo ações, ofícios, notificações e fiscalizações, impetradas pelo Departamento Jurídico da Autarquia – desde o início da gestão, em 2018, até os dias atuais. Todo esse ativismo foi fortalecido em 2021, com a criação da Comissão de Defesa do Ato Médico. “O grande problema da execução de procedimentos médicos por profissionais de outras áreas, sem a devida habilitação, é o risco que esta prática representa para os pacientes. No final, cabe ao médico corrigir os erros e tratar as complicações”, afirmou a presidente do Cremesp, Irene Abramovich. Outra iniciativa importante foi, mais recentemente, a campanha Defesa do Ato Médico, lançada em novembro de 2022. Divulgada em sites, YouTube e redes sociais, o objetivo foi alertar e conscientizar médicos e população quanto aos riscos relacionados a procedimentos médicos executados por profissionais de outras áreas despreparados e que causam danos, muitas vezes irreversíveis, à saúde da população. Ato Médico De olho no combate à morosidade do Poder Judiciário em decisões relativas à aplicação da Lei do Ato Médico, outra ação de peso diz respeito à representação junto à Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), cobrando celeridade no julgamento que versa sobre a invasão na prática médica, cujo processo está em curso desde 2018, com resposta não satisfatória. Após a intervenção, o Cremesp ingressou com pedido de terceiro interessado no caso e reuniu representantes das Sociedades de Especialidades para discutir e unir forças diante do cenário atual. A este resultado somam-se outros, entre os que ainda se encontram em curso, como as três ações judiciais impetradas desde o início de 2023, levando à abertura de novas frentes em defesa das prerrogativas médicas. Entre os ofícios que culminaram em ações vitoriosas contra práticas abusivas na área médica, destacam-se os enviados ao Ministério Público e aos Conselhos de Odontologia do Ceará e de Santa Catarina. Eles denunciavam a divulgação de cursos nas redes sociais por profissionais não médicos, como Marco Antonio Botelho Soares, que se intitulava criador de técnica de modulação hormonal com nanopartículas, para cura de doenças graves, como o câncer; e Karina Lorenzon May, que ministrava palestras sobre modulação hormonal no tratamento do espectro autista. A atuação do Cremesp em defesa da Lei do Ato Médico continuou avançando em outros Estados, como é o exemplo da participação da autarquia em audiência pública realizada pelo Ministério Público de Minas Gerais, em fevereiro de 2020, cujo pioneirismo levou o Cremesp a debater, nos dias do evento, com outros Conselhos profissionais da área da saúde, apresentando robustas razões legais contra a edição desenfreada de resoluções que colidem com a Lei Federal do Ato Médico. Também foi decisiva a ação que diz respeito à representação enviada ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e à Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, contestando a concessão de liminar para atuação de [2] Campanha Defesa do Ato Médico alerta sobre riscos à saúde
dentistas em área de exclusiva atuação de médicos. No documento, o Cremesp critica a decisão monocrática, proferida pelo desembargador federal Novély Vilanova da Silva Reis, em favor da suspensão dos efeitos do impedimento previsto no art. 1º da Resolução nº 230/2020, do Conselho Federal de Odontologia (CFO). A normativa do CFO vedava ao cirurgião-dentista efetuar procedimentos estéticos invasivos na face — como a alectomia, cirurgia de castanhares ou lifting de sombrancelhas, blefaroplastia e otoplastia —, uma vez que exigem qualificação técnica na área médica. “Nossa mobilização foi realmente importante. Recentemente vimos que, em fevereiro, o mesmo desembargador deferiu efeito suspensivo requerido pelo CFM contra não especialistas, o que mostra que conseguimos levar mais clareza quanto ao ato médico e o título de especialista ao desembargador”, destacou o coordenador do Departamento Jurídico, Joaquim Francisco Almeida Claro. Resultados concretos Como desdobramento das ações do Cremesp, destacam- -se vitórias importantes a exemplo das que impediram condutas privativas da Medicina e de prescrição de tratamentos sem reconhecimento científico, por profissionais não médicos, como a blefaroplastia, rinomodelação e lipoaspiração de papada. O Conselho também obteve sucesso em ações envolvendo outras especialidades, como as de Ginecologia e Obstetrícia, em que impediu a prática de implantação de DIU por enfermeiros; ou envolvendo a utilização da Acupuntura por não médicos, entre outras tantas infrações. O Cremesp impôs nova derrota aos profissionais não médicos, em dezembro de 2022, ao ser derrubada, na Justiça, a alegação – inverídica – de que esta seria, entre as entidades médicas, a que mais “estaria veiculando informações falsas, ao anunciar que a Acupuntura constitui atividade privativa de médicos”. A ação havia sido perpetrada por uma associação privada intitulada “Conselho Regional de Auto-Regulamentação da Acupuntura”. A Procuradoria Regional da República da 3ª Região — que agrega os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul — indeferiu a representação, apontando que o assunto já havia sido abordado anteriormente, em Ação Civil Pública (ACP) na 7ª Vara Federal Cível, que reconheceu a legitimidade da atuação dos Conselhos Federal e Regional de Medicina na defesa da Lei do Ato Médico. Revalida A formação médica também Procedimentos estéticos executados por não médicos podem resultar em lesões de difícil reparação [3] 18 • SER MÉDICO DOSSIÊ: Ato Médico | PANORAMA [3] DIMID_86/ISTOCK Ações judiciais promovidas pelo Conselho produzem resultados concretos em defesa das prerrogativas médicas
Projeto MasterClass conta com participação de Sociedades de Especialidades e visa orientar médicos [4] SER MÉDICO • 19 [4] FOTO: OSMAR BUSTOS tem sido alvo de atenção do Cremesp, no sentido de garantir que somente profissionais devidamente habilitados possam exercer a Medicina. A Autarquia tem impedido rigorosamente a emissão de registros profissionais para médicos formados no exterior e que não se submeteram ao Revalida. Além disso, visando combater a iniciativa de propagação de cursos de curta duração ou pós-graduações — de qualidade duvidosa para a obtenção de suposto título de especialista pela Associação Médica Brasileira (AMB), apoiada pela Associação Paulista de Medicina —, foi promovida, pelo Cremesp, a judicialização contra a portaria da AMB. Inicialmente por meio de notificação, o Conselho solicitou a revogação da portaria nº 01/2022, que propunha o reconhecimento de habilitações por meio de certificação da Comissão de Ensino Médico e Pós-Graduação da entidade, à margem do que determina a Comissão Mista de Especialidades. Como não houve resposta à manifestação, foi impetrada uma ação na Justiça, pedindo a cassação da portaria da AMB, tendo em vista os prejuízos e riscos causados à formação médica e o criterioso padrão para concessão do título de especialista, que é registrado perante os Regionais de Medicina. Diante do recuo da AMB, que revogou a aludida portaria, houve o arquivamento da demanda, demonstrando a responsabilidade deste Conselho quanto à manutenção e rigor para registro de RQE. O EXEMPLO DO PROJETO MASTERCLASS O Cremesp tem promovido encontros frequentes visando difundir informação de qualidade em benefício da boa prática médica. Exemplos disso são eventos como o Fórum Relações de Consumo na Carreira Médica e o Meeting Publicidade Médica na Residência e Graduação, realizados em 2022, ambos presenciais e com transmissão online pelo canal do Conselho no YouTube, onde continuam disponibilizados. São encontros realizados com representantes das sociedades de especialidades, Ministério Público do Estado de São Paulo, Poder Judiciário e instituições de saúde. No mesmo ano, o Cremesp lançou o projeto MasterClass, com a participação da Comissão de Defesa do Ato Médico, para promover conversas com as Sociedades de Especialidades e fortalecer relações com os presidentes e diretores dessas entidades, com o intuito de aumentar a discussão técnica de temas relevantes, privilegiando os médicos do Estado de São Paulo. O primeiro encontro do projeto, realizado em setembro de 2022, discutiu as barreiras da implantação de cuidados paliativos em serviços médicos, que contou com a participação da diretora 2ª secretária, Maria Camila Lunardi, e representantes da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Em outro evento, foi discutido o que fazer frente aos erros provocados por procedimentos de não médicos, que contou com a participação da Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica (SBCD), do Instituto de Medicina Social e Criminologia do Estado de São Paulo (IMESC), da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Regional São Paulo (SBCP-SP), da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e da Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica (SBCD). O MasterClass, realizado em fevereiro deste ano, teve como tema a segurança nos procedimentos anestésicos e contou com a participação da Sociedade Brasileira de Anestesiologia e da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo. Todos os eventos dessa série estão disponíveis no canal do Cremesp no YouTube.
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