SM_103_WEB

3 4 • S E R M É D I C O C R Ô N I C A m plantão noturno? Depois de tanto tempo, havia prometido que não faria plantões à noite até o Guilherme completar um ano, mas um colega precisava tanto… E seria só um para ajudá-lo. Guilherme já tinha sete meses e teria as melhores pessoas para cuidar dele — a avó e a bisa —, então, resolvi ir. Como sempre, o plantão lotado à noite só complicava, pois o número de médicos era reduzido e ainda atendíamos Pediatria. Por volta das 22 horas, o recepcionista vem com uma ficha e pede: — Doutora, pode atender este caso? Acho que vai ser mais complicadinho… Dei uma risada e respondi: — Vamos lá, né? Mas, quando vi a ficha, já me preocupei: paciente recém-nascido, 18 dias. Ah, meu Deus, um RN, às 22 horas! Coisa boa não deve ser. Chamo pelo nome na ficha e entra uma senhora com um bebê. Já na primeira olhada, a icterícia que ele apresentava era assustadora. Com uma mistura de surpresa e indignação, pergunto: — Mãe, como você deixou para trazer seu bebê nestas condições O melhor plantão extra de minha vida Maria Camila Lunardi* U ao hospital tão tarde? — Calma, doutora, ele não é meu filho. É filho de minha vizinha, que precisava sair, deixou ele em casa e não voltou mais. Há meia hora soubemos que ela foi presa. Estou desesperada! Não tenho condição de ficar com ele, que não consegue nem mamar; além de estar amarelo deste jeito. Pedi que ela colocasse o bebê na maca, e tiramos sua roupa. Era de entristecer. Pesava pouco mais de dois quilos, estava totalmente ictérico, mal fazia baixos resmungos. Coloquei a mão perto de sua boca e vi o desespero em abocanhar. — Vamos interná-lo. Vou chamar a pediatra e ele ficará para tratamento. Vi um semblante de calma no rosto daquela senhora. Preenchi a internação e a pediatra veio receber o paciente. Fui embora do meu plantão pensando naquele bebê recém- -nascido, com a mãe presa, necessitando de cuidados e contando com a sorte da vizinha… Voltei ao hospital um dia depois para o meu plantão. Cheguei mais cedo para passar na Pediatria e ver o bebê, que estava lá no banho de luz, usando apenas fralda — uma tão grande que o cobria quase todo! — Viu como está o Vinícius, doutora? — perguntou a enfermeira — Vinícius? Ele tem nome? — Nós colocamos o nome de Vinícius! — Então, para mim é Henrique, nome que darei a um segundo filho, se tiver! — disse, sorrindo. E assim foram meus dias: passando para visitar o Henrique, de manhã, antes de entrar no plantão. Foram duas semanas nessa rotina até que, em uma manhã, encontrei as enfermeiras preocupadas. Uma delas, então, me disse que o Henrique iria receber alta e que, por não ter nenhum familiar, iria para o orfanato; e que a assistente social já estava no hospital providenciando sua saída. Aquilo me causou um desconforto imenso… Ele não tinha condições de ir para um orfanato. Fui, então, falar com a chefe da Pediatria. Ela disse que estava péssima com a decisão, mas, em relação ao tratamento médico, não tinha mais o que fazer. E como havia surto de diarreia na cidade, com muitas crianças sendo internadas,

RkJQdWJsaXNoZXIy NjAzNTg=