S E R M É D I C O • 3 5 ela tinha receio em deixá-lo ali. Naquele dia trabalhei sem tranquilidade. No final do dia, angustiada, perguntei a uma técnica de enfermagem onde ficava o orfanato, e ela respondeu: — Doutora, eu sei onde fica e, se quiser, vou com você! Juro que nem pensei duas vezes. Entramos no carro e nos dirigimos ao orfanato. Chegando lá, nos deparamos com as cuidadoras tentando alimentar o Henrique, com uma mamadeira enorme, que nem cabia em sua boca. Avisei que ele não sabia sugar e que era necessário alimentá-lo com um pequeno copo. Todos os dias eu passava uma ou duas horas com o Henrique no orfanato e percebia os cuidados especiais que ele exigia; e as poucas funcionárias não tinham como dedicar tanto tempo a ele. Em uma das visitas, fui avisada pela cuidadora que a responsável pelo orfanato queria falar comigo. Imediatamente imaginei que diria algo sobre limitar meus dias de visita, mas a surpresa foi muito maior. Ao entrar na sala, ela logo me falou: — Doutora, chegamos à conclusão que o Henrique precisa de cuidados maternos e não estamos sendo suficientes aqui. Conversamos com a juíza e, caso a senhora queira, terá a guarda provisória dele por 90 dias. Aquela notícia era inesperada demais. Um bebê de pouco mais de um mês e eu com o Guilherme, de sete meses, em casa... Não pensei duas vezes e disse: — Sim! Eu cuido do Henrique! Três dias depois estávamos eu e o Henrique em casa! Eu havia comprado um enxoval para ele, e tínhamos um quarto de bebê já montado — e eu acreditava ser uma "experiente" mãe de umfilho de sete meses e, agora, de outro, de ummês. Os primeiros dias foram desafiadores. Henrique levou uma semana para chorar de verdade, com fôlego, pela primeira vez! Alimentá-lo era muito difícil, mas eu podia oferecer algo que ele não tinha no orfanato: leite materno! Eu ainda amamentava o Guilherme e, assim, fortalecemos nossos laços. Os movimentos de deglutição do Henrique melhoraram muito ao mamar no peito; além de seu ganho de peso se tornar nítido de um dia para o outro. E assim foram nossos 90 dias: Henrique tinha mãe, pai, avós e irmão! Cada interação que ele tinha conosco era uma vitória: seu primeiro sorriso, o reconhecimento da voz das pessoas da casa, o choro matinal… Em três meses, Henrique havia triplicado seu peso e já tinha um desenvolvimento adequado para um bebê de quatro meses e meio. Até que o dia tão pouco desejado chegou. Três de maio, o dia que acabaria minha guarda. Que dor! ILUSTRAÇÃO: DEHILA CAMPELO Cheguei com o Henrique nos braços no mesmo lugar de onde o tinha levado 90 dias antes. Algumas novidades surgiram nesse período. Seu registro de nascimento havia sido feito. Seu nome era Carlos Eduardo e sua mãe biológica estava prestes a ser libertada. Com certeza, aquele foi um dos dias mais dolorosos de minha vida, mas tinha a sensação de dever cumprido. Foi o atendimento de emergência mais longo, doce e prazeroso que eu tinha realizado: senti que salvei aquela criança e dei mais que o tratamento médico. Havia permitido que ela pudesse se desenvolver como uma criança normal, durante um período tão delicado de sua formação. Mas sua mãe iria voltar. As assistentes sociais já preparavam a reaproximação e, independentemente do que ela havia feito, era sua mãe e sempre solicitava notícias de seu bebê. Ela também estava aflita para revê-lo. Hoje vejo a passagem do Henrique por minha vida como mais uma das bençãos que Deus me concedeu como médica! Quem poderia imaginar que um atendimento em pronto- socorro pudesse propiciar tanto amor para mim e minha família? Penso sempre nele, em como está, quemundo aqueles olhos azuis estão vendo e o quanto cresceu! Henrique foi, com certeza, o melhor plantão extra que já dei em minha vida… *Ex-supervisora do Programa de Residência Médica de Medicina de Emergência do Hospital Santa Marcelina e conselheira do Cremesp.
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