S E R M É D I C O • 1 SER MÉD I CO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO Nº 103 • ANO XXV • 2023 WWW. C R EME S P. O R G . B R ME D I C I NA D E E M E R G Ê N C I A ENTREVISTA Ludhmila Abrahão Hajjar, professora titular de Medicina de Emergência da Fmusp Pág. 6 CRÔNICA O inesquecível plantão extra que durou muito mais que o esperado Pág. 35 HOBBY Paixão pelo surfe leva médicos a trocar metrópole por Ubatuba Pág. 38 TURISMO Sicília tem belezas naturais, arquitetura antiga e boa gastronomia Pág. 40 O reconhecimento e a qualificação na área, as diversas frentes de trabalho, as perspectivas de mercado e os desafios de implantação de serviços de Medicina de Emergência – especialidade reconhecida há mais de 50 anos em alguns países; e desde 2015, no Brasil
VOCÊ, MÉDICO, SOFREU OU PRESENCIOU? O CREMESP QUER TE OUVIR. prerrogativas@cremesp.org.br Cuidando d cuidando d Cuidando da medicina, cuidando de você. Cuidando da medicina, cuidando de você. Cuidando da medicina, cuidando de você. Cuidando d cuidando d Cuidando d cuidando d Veja o que a atual gestão do CREMESP já está fazendo para proteger a boa medicina e a sociedade em: cremesp.org.br/prerrogativas / cremesp ATRASO NO PAGAMENTO. GLOSA,
S E R M É D I C O • 1 N E S TA E D I Ç Ã O esta edição, a revista Ser Médico traz um especial sobre a Medicina de Emergência (ME), a nova especialidade que foi moldada e aprimorada ao longo dos tempos, em condições e ambientes sensíveis, que incluem o atendimento de pacientes em estado grave, vítimas de conflitos e desastres, entre outros eventos. A trajetória da ME, seja como área de atuação ou especialidade, é permeada também pelos avanços tecnológicos e dos protocolos médicos, além de uma prática baseada em evidências científicas. A valorização da ME vem na esteira do reconhecimento de que profissionais formados adequadamente contribuem para melhorar os indicadores da assistência à saúde, desde a porta de entrada no sistema. Sua consolidação está em curso e ainda faltam políticas de saúde que possam estruturar e instrumentalizar mais adequadamente esse setor da assistência, que é fundamental para o sistema de saúde como um todo. Naentrevistadestaedição, aprofessora Ludhmila Abrahão Hajjar — primeira mulher a assumir o cargo de docente-titular da disciplina de Medicina de Emergência da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Fmusp) — conta um pouco de sua vivência nessa área, entre outros assuntos. A matéria de história faz um resgate do início da assistência em Emergência, que inA revista inclui, ainda, seus habituais conteúdos como hobby, turismo, crônica e resenha, entre outros. O leitor conhecerá dois médicos emergencistas e surfistas que se mudaram para o litoral, em busca de uma vida saudável, conciliando o trabalho à prática do esporte radical. A edição também apresenta um pouco da Sicília, um dos destinos mais interessantes da Itália, carregado de histórias que remontam à sua ocupação por povos antigos, como os gregos. Além de seu impressionante patrimônio arquitetônico e cultural, a Sicília tem belezas naturais — como o vulcão Etna e o Orecchio di Dionísio —, praias encantadoras e uma culinária tão diversa quanto fantástica. O filme recomendado nesta edição é Oppenheimer, que conta a história do criador da bomba atômica, passando também pelos dilemas éticos que os avanços da científicos podem gerar na sociedade. Tudo isso é apenas um pouco do que os colegas encontrarão nesta edição da Ser Médico. Boa leitura! Wagmar Barbosa de Souza Coordenador da Assessoria de Comunicação clui a primeira e a segunda guerras mundiais, abordando também as mobilizações dos últimos 50 anos que deram visibilidade e reconhecimento à área, promovendo mudanças que melhoraram, e muito, a vida dos pacientes. No Brasil, o desenvolvimento da MEestá vinculadoaopioneirismode equipes de centros de qualificação profissional, que buscaram capacitar emergencistas antes mesmo do reconhecimento da especialidade. Graças ao empenho de alguns grupos de médicos para organizar uma formação adequada e aperfeiçoar o Atendimento em Emergência, os preceitos da ME foram se difundindo, ao longo de décadas, auxiliando emmudanças na regulação e operacionalização da assistência. A especialidade vem crescendo nos espaços formadores e de prática da Medicina no País, mas ainda tem muitos desafios pela frente. A interface com outros especialistas e os eventuais conflitos que um novo profissional pode suscitar em serviços estruturados também são assuntos tratados nesta edição. A expansão de residências em ME é recente, e as instituições envolvidas vêm buscando organizar diretrizes que possam resultar em uma formação padronizada. Os avanços tecnológicos e a inteligência artificial (IA), aliados à boa formação profissional, também são abordados nesta edição, apontando caminhos promissores à especialidade. N [1] FOTO: OSMAR BUSTOS [1] A JOVEM E PROMISSORA MEDICINA DE EMERGÊNCIA
2 • S E R M É D I C O Certificado no escopo: Serviços cartoriais relativos à Pessoa Física e Pessoa Jurídica; serviços judicantes realizados na sede do Cremesp, relativos às atividades administrativas para a tramitação de sindicâncias e de processos ético profissionais; manutenção dos dados cadastrais dos médicos; intermediação da isenção de rodízio municipal de veículos; atendimento telefônico e presencial na sede e delegacia da Vila Mariana, referente aos serviços cartoriais. EXPED I ENTE CONSELHEIROS Altino Pinto, Angelo Vattimo, Camila Cazerta de Paula Eduardo (licenciada), Chien Yin Lan, Christina Hajaj Gonzalez, Cynthia Dantas Kurati, Daniel Kishi, Edoardo Filippo de Queiroz Vattimo (licenciado), Eliane Aboud, Everaldo Porto Cunha, Fernando José Gatto Ribeiro de Oliveira, Flavia Amado Bassanezi, Flávia Bellentani Casseb, Francisco Carlos Quevedo, Henrique Liberato Salvador, Irene Abramovich, Joaquim Francisco Almeida Claro, José Gonzalez, Juliana Takiguti Toma, Julio César Zorzin, Lucio Tadeu Figueiredo, Lyane Gomes de Matos Teixeira Cardoso Alves, Marcello Scattolini (licenciado), Maria Alice Saccani Scardoelli, Maria Camila Lunardi, Mário Antonio Martinez Filho, Mario Cezar Pires, Mario Jorge Tsuchiya, Mario Mosca Neto, Mirna Yae Yassuda Tamura, Mônica Yasmin Pinto Corrado, Paula Yoshimura Coelho, Paulo Tadeu Falanghe, Pedro Sinkevicius Neto, Regina Maria Marquezini Chammes, Rodrigo Costa Aloe, Rodrigo Lancelote Alberto, Rodrigo Souto de Carvalho, Silvio Sozinho Pereira, Tatiana Regina Criscuolo, Wagmar Barbosa de Souza CONSELHO EDITORIAL Irene Abramovich, Angelo Vattimo, Wagmar Barbosa de Souza, Maria Camila Lunardi, Pedro Sinkevicius Neto e Rodrigo Souto SER MÉDICO Coordenador do Departamento de Comunicação: Wagmar Barbosa de Souza Chefe da Assessoria de Comunicação: Marcos Michelini Líder da Assessoria de Comunicação: Júlia Remer Editora: Ivolethe Duarte Subeditora: Fátima Barbosa Colaboradores: Aglaé Silvestre, Concília Ortona Reyes, Nara Damante e Vitor Bastos Fotografia: Osmar Bustos Designer Gráfica: Jade Longo Administrativo: Bruna Carolina Wojtenko e Leonardo Costa Estagiária: Maria Eduarda Oliveira Lima Impressão: Plural Indústria Gráfica Tiragem: 181.000 exemplares. Periodicidade trimestral. Opinião e conceitos emitidos em matérias assinadas não refletem necessariamente a opinião da Ser Médico ISSN: 1677-2431 Imagem da capa: andresr/Istock CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO CAT - Central de Atendimento Telefônico: (11) 4349 - 9900. Atendimento na sede: Rua Frei Caneca, 1.282 — Consolação (das 9h às 18h) E-mail: sermedico@cremesp.org.br DIRETORIA Presidente: Irene Abramovich Vice-Presidente: Maria Alice Saccani Scardoelli 1° secretário: Angelo Vattimo 2ª secretária: Maria Camila Lunardi Tesoureiro: Pedro Sinkevicius Neto Corregedor: Rodrigo Lancelote Alberto Vice-Corregedora: Maria Alice Saccani Scardoelli (interina) Departamento de Comunicação: Wagmar Barbosa de Souza Delegacias Metropolitanas: Flavia Amado Bassanezi Delegacias do Interior: Rodrigo Souto de Carvalho Departamento de Fiscalização: Daniel Kishi Departamento Jurídico: Joaquim Francisco Almeida Claro
Í ND I CE 6 ENTREVISTA / LUDHMILA ABRAHÃO HAJJAR Docente-titular de Medicina de Emergência da Fmusp 4 CARTAS & NOTAS 12 MEDICINA DE EMERGÊNCIA / HISTÓRIA Dos primórdios à valorização da ME como área de atuação e especialidade no mundo 16 MEDICINA DE EMERGÊNCIA / PANORAMA O longo caminho para consolidação e reconhecimento da ME no Brasil 24 MEDICINA DE EMERGÊNCIA / VANGUARDA Perspectivas para a ME no contexto da assistência médica 28 32 34 CRÔNICA Um longo e inesquecível plantão extra TURISMO Sicília, a surpreendente ilha de múltiplos encantos 40 AGENDA CULTURAL Espetáculos de dança, shows, exposições e festival de piano garantem entretenimento para todos os gostos 44 RESENHA Oppenheimer, o “pai” da bomba atômica – os fins justificam os meios? 47 FOTOPOESIA Pneumotórax, de Manuel Bandeira 48 36 HOBBY Médicos trocammetrópoles por litoral para ficar perto das altas ondas propícias ao surfe 2O MEDICINA DE EMERGÊNCIA / EM FOCO O percurso e os desafios da formação de emergencistas 30 MEDICINA DE EMERGÊNCIA / TECNOLOGIA Avanços tecnológicos e IA dão suporte para uma assistência mais eficiente MEDICINA NO MUNDO Cromossomo Y, vinho como cardioprotetor e implante contra depressão MEDICINA DE EMERGÊNCIA / OPINIÃO A visão e o papel do especialista no sistema de saúde
4 • S E R M É D I C O CARTAS & N O T A S CA RTA Cartas para: sermedico@cremesp.org.br ou Rua Frei Caneca, 1.282, Consolação, São Paulo - SP — CEP 01307-002. A Ser Médico reserva-se o direito de publicar trechos das mensagens. Informe o nome completo e número de CRM, se for médico/a. NÚMERO 102 Excelente o número 102 da Ser Médico. Mas não respondeu a uma conjectura: a Cracolândia existiria se os antigos hospícios tivessem sido melhorados ao invés de eliminados? Márcio Passini Gonçalves de Souza CRM 11.036 CHAPA 1 VENCE AS ELEIÇÕES DO CREMESP PARA A GESTÃO 2023-2028 A chapa 1 – Juntos pelo médico de São Paulo venceu a eleição para a gestão 2023-2028 do Cremesp, realizada online, nos dias 14 e 15 de agosto. Após a apuração do resultado da votação, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), de um total de 120.149 mil votos válidos, a chapa 1 obteve 38.975 deles, ou 37,51% dos votos dos médicos inscritos no Estado de São Paulo. Além da vencedora, concorreram as chapas 2 – Novo Cremesp (26.085 ou 25,11%), 3 – Resgate dos médicos e da Medicina (17.694 ou 17,03%), 6 – Medicina com respeito (13.462 ou 12,96%) e 7 – Chapa limpa (7.683 ou 7,39%) no Estado de São Paulo. A apuração também apontou 5.920 votos em branco e 10.330 nulos. Os resultados foram apresentados durante sessão de encerramento das eleições dos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) de 2023, no dia 15 de agosto, com transmissão ao vivo pelo canal do CFM no YouTube. Amesa coordenadora foi integrada por José Alejandro Bullón, coordenador jurídico do CFM; José Hiran da Silva Gallo, presidente do CFM; La Hore Corrêa Rodrigues, presidente da Comissão Nacional Eleitoral; Fernando de Pinho Barreira, diretor da empresa The Perfect Link Auditoria de Eleições e Perícia Forense; Fernando Abdalla, conselheiro da seccional Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); e Gleidson Porto, coordenador de informática e tecnologia do CFM. O presidente da Comissão Nacional Eleitoral ressaltou o marco histórico dessa eleição, a primeira realizada totalmente online pelos Conselhos. Barreira afirmou que a auditoria validou internalmente o processo eleitoral, enaltecendo a adesão dos eleitores. No Brasil, foram 397.941 votantes (77,66%) e 114.502 (22,34%) não votantes. Em São Paulo, o índice de votos foi de 74% (120.149) em relação ao número total de eleitores aptos, de 154.935. O presidente do CFM destacou que os médicos depositaram nas urnas digitais a expressão de suas vontades, demonstrando considerar a tecnologia uma aliada de sua vida pessoal e profissional. “Nunca antes tantos médicos votaram em um pleito de nossa classe, o que agrega legitimidade e representatividade nas ações que serão realizadas pelas gestões daqui em diante”, afirmou. Os presidentes de todas as comissões eleitorais estaduais também se manifestaram, incluindo o médico Renato Arioni Lupinacci, presidente da Comissão Regional Eleitoral do Cremesp, que teve como secretários os também médicos João Benetti Júnior e Irimar de Paula Posso. Durante a transmissão ao vivo do CFM, o arquivo com os resultados das eleições dos CRMs foi descriptografado, revelando os resultados e os vencedores. Todos os documentos estão disponibilizados no endereço https://eleicoescrms.org.br/.
S E R M É D I C O • 5 [1] ANTON VIERIETIN/ISTOCK [1] CARTA ABERTA À sociedade brasileira e à comunidade científica brasileira Escrevemos esta carta no contexto da 72ª Nobel Laureate Meeting, em Lindau, Alemanha, onde tivemos a honra de representar nosso País. Em meio a algumas das mais brilhantes mentes do mundo científico, fomos inspirados a refletir sobre a situação atual de nossa própria comunidade científica. Observamos – com preocupação – a persistência de barreiras significativas que dificultam o pleno florescimento de nosso potencial científico no Brasil. Ainda enfrentamos obstáculos estruturais, que se estendem desde o brain drain, ou a “fuga de cérebros”, até as questões de diversidade, de colaboração internacional e, não menos importante, os desafios políticos. O fenômeno da fuga de cérebros, por exemplo, se apresenta de forma clara em nosso País, com talentos inestimáveis sendo atraídos para fora do Brasil em busca de melhores condições de pesquisa e compensação financeira. Temos orgulho da nossa formação em universidades públicas brasileiras, entretanto, apenas um do nosso grupo mora atualmente no País. Ademais, a persistência de disparidades na Ciência brasileira, principalmente em posições de liderança, é algo que se deve enfatizar. É essencial que trabalhemos para criar ambientes de pesquisa que acolham e valorizem igualmente todos os cientistas, independentemente de gênero, raça e orientação sexual, assim como equiparar as posições de chefia e protagonismo. Em referência à colaboração internacional, que tem o potencial de aprimorar a qualidade e o impacto de nossas pesquisas, enfrentamos o processo, muitas vezes, dificultado por barreiras burocráticas e falta de recursos. Mesmo dentro de nossas próprias fronteiras, existe uma disparidade significativa na distribuição de recursos de pesquisa entre as diferentes regiões do Brasil. A influência indevida da política na alocação de recursos representa um desafio adicional. Diante de uma sociedade polarizada, reiteramos que a Ciência deve ser guiada por uma busca objetiva de conhecimento. É crucial que protejamos a integridade de nossa pesquisa da influência da política. A desigualdade no acesso ao financiamento e os baixos salários para os pesquisadores representam barreiras significativas para o desenvolvimento de uma comunidade científica robusta e diversificada. Nota-se que muitos jovens pesquisadores, por vezes, desistem de fazer Ciência no Brasil pela remuneração baixa em bolsas de dedicação exclusiva. Convidamos, assim, a comunidade científica, os acadêmicos, os formadores de opinião, a mídia e as lideranças políticas para trabalharmos juntos, a fim de instituirmos políticas de Estado que permitam ummaior acesso a fundos de pesquisa, valorizem instituições de pesquisas locais, diminuam a fuga de cérebros e incentivem as colaborações internacional e regional. Acreditamos que a diversidade é a força motriz da inovação e da criatividade científica. É nossa responsabilidade conjunta garantir que todos os cientistas brasileiros tenham a oportunidade de contribuir plenamente para a expansão de nosso conhecimento coletivo. Agradecemos antecipadamente pelo apoio e por se juntarem a nós neste debate. Com os melhores cumprimentos, Carolina Victoria Junho – Universidade de Aachen (Alemanha) e ex-aluna da Universidade Federal do ABC (UFABC); Francisco Isaac Fernandes Gomes – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade de Yale (EUA); Gustavo Rosa Gameiro – Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/ Unifesp), Universidade de Miami e antigo aluno da Faculdade de Medicina da USP; Júlia Teixeira de Castro – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP); Taissa de Matos Kasahara – Universidade de Oslo (Noruega) egressa da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com apoio de: Sir Richard J. Roberts, PhD., F.R.S. – 1993 Nobel Laureate in Physiology or Medicine; Prof. Johann Deisenhofer, PhD. – 1988Nobel Laureate in Chemistry. Lindau, 30 de junho de 2023.
6 • S E R M É D I C O E N T R E V I S TA atendimento ao paciente crítico sempre foi uma paixão que moveu a cardiologista, emergencista e intensivista Ludhmila Abrahão Hajjar desde o princípio de sua formação na Universidade de Brasília (UnB). A vocação e a dedicação levaram-na a assumir o cargo de professora titular da disciplina de Emergências Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Fmusp), após concurso realizado em meados de julho deste ano. Desafios não faltam à área, sobretudo no que se refere ao Hospital das Clínicas da mesma instituição (HC-Fmusp), mas eles não a assustam. “É de minha responsabilidade atuar para que o ensino das Emergências Clínicas cresça e a especialidade tenha o seu valor reconhecido, para que o residente tenha orgulho dela, um local adequado no mercado de trabalho e seja valorizado”, assegura. O aumento do número de emergencistas, a fusão do conhecimento entre Medicina de Emergência (ME) e Terapia Intensiva, a internacionalização da especialidade por meio de colaboração científica e assistencial com outros países e a participação dos profissionais da área na formulação de políticas públicas são algumas de suas muitas prioridades. “Tenho certeza de que é possível conseguir essas metas”, garante. Conhecimento e experiência para isso não faltam, como demonstra seu extenso Currículo Lattes, que inclui, entre outras inúmeras atividades, 210 artigos completos publicados em periódicos e sete livros publicados, organizados ou editados. Ludhmila fez doutorado em Medicina, residência em Clínica Médica e em Cardiologia, além de especialização em Terapia Intensiva na Fmusp. Foi professora associada do Departamento de Cardiopneumologia da mesma universidade durante 12 anos. É diretora da Cardio-oncologia do Instituto do Coração, coordenadora da Cardiologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e do Programa de Pós-Graduação em Cardiologia no complexo da Fmusp. No setor privado, trabalhou no Hospital Sírio-Libanês e, atualmente, é diretora da Cardiologia e de UTIs do Hospital Vila Nova Star. “ Meu desafio é grande, mas tenho certeza de que é possível alcançar as metas” O | L U D HM I L A H A J J A R Fátima Barbosa Nova professora titular de Emergências Clínicas do HC-Fmusp, Ludhmila Hajjar, tem inúmeros e ambiciosos objetivos para a especialidade de ME na instituição e no País
S E R M É D I C O • 7 [1] ARQUIVO PESSOAL/LUDHMILA HAJJAR [1] Ser Médico – Qual é o papel da Medicina de Emergência no atendimento à saúde? Ludhmila Hajjar — Podemos definir a Medicina de Emergência como a abordagem e o manejo das situações que representam um risco imediato à vida. Ou seja, é uma necessidade que pode atingir todo mundo. Com o envelhecimento da população e o aumento da complexidade das doenças, a especialidade é ainda mais essencial para mantermos nossa população protegida. Essa constatação fez com que fosse necessária a criação de uma especialidade específica, que é a Medicina de Emergência. Ser — A sra. recém assumiu o cargo de docente titular da disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-Fmusp). Quais são suas expectativas e os desafios neste novo momento? Ludhmila — Estou muito feliz. Sonhei muito com isso desde o início da minha residência em Clínica Médica, quando tinha 22 anos, no HC-Fmusp, em 2001. Minha formação e carreira foram todas voltadas para o paciente grave. Trabalhei na área crítica vislumbrando um dia poder estar à frente dela, com a possibilidade de atuar fortemente para o fortalecimento da especialidade, para a colocação do Brasil como um dos países de fronteira do conhecimento nessa área. Tenho certeza de que podemos fazer isso. Como professora titular, é de minha responsabilidade enfrentar o desafio de atuar para que o ensino da ME cresça e a especialidade tenha seu valor reconhecido, para que o residente da especialidade tenha orgulho dela, disponha de um local adequado no mercado de trabalho e seja valorizado. Quando falo de ensino, não me refiro apenas à residência, mas também à graduação, implementando a ME desde o início da formação do futuro médico e também na pós-graduação, com mestrado profissional, doutorado e docência na área. Meu desafio é grande e tenho certeza de que é possível alcançar essas metas. Existem muitas pessoas e serviços no Brasil já vocacionados para isso, mas acho que a liderança de uma universidade como a USP e seu HC — com toda sua complexidade, enormidade de leitos e quantidade de atendimentos de emergência — pode fortalecer a formação humana e a divulgação e disseminação do conhecimento especializado em uma área tão fronteiriça da Medicina. Ser — Sendo uma especialidade nova, a sra. acredita que a gestão na Medicina de Emergência seja um desafio mesmo em uma instituição grandiosa como o HC? Ludhmila: "precisamos aumentar o número de serviços e de especialistas, assim como internacionalizar mais a ME por meio de colaborações científica e assistencial"
8 • S E R M É D I C O Ludhmila — É desafiador, mas muitas barreiras já foram quebradas nos últimos anos. Atualmente, por exemplo, o HC tem 102 residentes por ano na área, sendo 72 de ME e 30 de Terapia Intensiva. São jovens extremamente estimulados e bem informados, que farão parte do dia a dia da transformação da disciplina. O reconhecimento da importância das especialidades de ME e Terapia Intensiva é crescente no HC nos últimos anos. Não vejo nenhuma dificuldade. Sinto uma alegria e um prazer enorme em estar à frente da disciplina. O maior desafio será unir todos os professores e disciplinas em torno dela, e tenho certeza de que vou conseguir. Ser — Como a sra. avalia a ME no Estado de São Paulo e no Brasil? Ludhmila — Como especialidade relativamente nova, sabemos que a consolidação vem sendo progressiva, com muita ajuda da Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). Contudo, ainda temos muito a crescer. Precisamos aumentar o número de serviços e de especialistas, assim como internacionalizar mais a ME, por meio de colaborações científica e assistencial com países de todo o mundo, mais experientes na área. Ao mesmo tempo, a ME tem de participar mais diretamente da formulação das políticas públicas da área. Considerando o HC como um núcleo de formação humana, vejo uma possibilidade enorme de, juntos, conseguirmos de fato crescer e ampliar a especialidade em todo o País, consolidando a formação, como aconteceu com a Terapia Intensiva há alguns anos. Temos de seguir o mesmo caminho. A disciplina de Emergências Clínicas do HC-Fmusp engloba a ME e a Terapia Intensiva, o que torna ainda mais importante a compreensão das melhorias que devemos conquistar para o cuidado do paciente crítico. Ser — Uma vez que a disciplina engloba o atendimento a todos os pacientes críticos do HC, há um planejamento diferenciado para os diversos setores? Ludhmila — Sim. Quando falamos de ME ou da disciplina, estamos nos referindo ao atendimento do paciente crítico, onde quer que ele esteja. Pode ser antes da chegada ao hospital, no sistema de transporte, na enfermaria, nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), no pronto-socorro ou no centro cirúrgico, ou seja, onde quer que o paciente crítico esteja, ele é atendido conforme o conceito da Medicina de Emergência. Com relação às outras especialidades do HC — durante o período em que eu estiver à frente da disciplina como professora titular —, todas serão chamadas, e já o foram, para participar desse processo e entendimento. O pronto-socorro não pode ser o pior lugar do hospital, o local que as especialidades acham que é um problema. Ao contrário, ele é a porta de entrada, central no funcionamento do hospital, e a ME, por definição, é uma medicina interdisciplinar. Existem emergências cardiovasculares, oncológicas, endocrinológicas, cirúrgicas e assim por diante. Meu papel é catalisar ações em torno disso. Todos os professores serão convidados a E N T R E V I S TA | L U D HM I L A H A J J A R Alunos da Fmusp: professora titular defende que a ME seja implementada desde a graduação [2] [2] FOTO: OSMAR BUSTOS
S E R M É D I C O • 9 participar dessa transformação e é assim que vamos conseguir mudar, fazendo uma revitalização do ponto de vista estrutural e funcional. O paciente é atendido pelo médico de emergência, mas ele é institucional, precisa do especialista, e isto faz parte do conceito do melhor cuidado. E, após a admissão na emergência, o paciente crítico segue um caminho. A disciplina que cuida das duas áreas —ME e Terapia Intensiva—possibilita uma visão ampla e multidisciplinar do cuidado. Ser — Algumas especialidades mais específicas serão convidadas a atuar com prioridade nesse projeto? Ludhmila — Algumas áreas têm um volume maior de atendimento na emergência, mas em um hospital que tem 35 especialidades, como o HC, todas serão convidadas a participar da concepção de protocolo de atendimento e de pesquisa. Claro que o atendimento primário é do médico de emergência, mas o paciente será destinado, muitas vezes, a um procedimento cirúrgico, vascular, neurocirúrgico, à cirurgia geral, ou vai precisar de avaliação do endócrino, do oncologista, do cardiologista… Por isso, não vejo uma diferenciação ou uma especificidade em relação às demais especialidades, mas sim em termos de volume, de números. Isso ocorre de acordo com o hospital. O HC, por exemplo, é um hospital de referência para altas complexidades e as especialidades mais acionadas por médicos de emergência são a Cirurgia Vascular, a Cardiologia Intervencionista, a Neurocirurgia e a Cirurgia Geral. Estas são as que têm ação central na emergência, mas todas as outras vão participar também. Então, penso que o modelo que vou implementar no HC poderá ser replicado. A ME é catalisadora e receptora, de uma forma em que todas as outras especialidades estão congruentes e interagindo. Por fim, quem terá o melhor resultado serão o paciente e o ensino. Ser — No Brasil e no mundo, as doenças cardiovasculares são as principais causas de mortalidade. Como seu livro Emergências Cardiovasculares, recém-lançado, pretende contribuir para melhorar esse cenário? Ludhmila — Esse livro foi escolhido pontualmente por causa dessa questão epidemiológica que você citou. Fizemos a publicação de forma muito prática, baseada, principalmente, em condutas, diagnóstico, tratamento e fluxogramas facilmente compreensíveis, para demonstrar que não é preciso ter a melhor estrutura, mas treinar o profissional de saúde para atender a população. Ser — Como a sra. analisa sua trajetória na emergência? O que considera ter sido mais importante até chegar a professora titular da disciplina na Fmusp? Ludhmila — Sem dúvida, foi minha paixão pelo atendimento do paciente vítima de uma situação que necessita de cuidados de urgência e emergência. Isso me moveu durante a vida toda, desde o princípio da minha formação na Universidade de Brasília (UnB). Estou completando, este ano, 22 anos de Hospital das Clínicas da USP, ou seja, de uma vida universitária e acadêmica voltada para o paciente crítico, de quem sonhou um dia estar à frente de um processo de transformação do ensino e de consolidação da área. Chego aqui imbuída de muita vontade, contando com o apoio de sociedades e demais entidades médicas, de muita gente, de todo o HC e da Faculdade de Medicina. A ME é catalisadora e receptora, de uma forma em que todas as outras especialidades estão congruentes e interagindo
1 0 • S E R M É D I C O [3] FOTO: OSMAR BUSTOS E N T R E V I S TA | L U D HM I L A H A J J A R Tenho uma diretora incrível, a professora Eloísa Bonfá, primeira mulher a ocupar esse cargo na Fmusp. Ela tem o mesmo entendimento que eu e esteve à frente do pronto-socorro durante 11 anos como diretora clínica. Ela poderia ter escolhido qualquer área para atuar, mas dedicou anos e anos a essa, por entender sua grandiosidade e importância para a formação das pessoas e para a assistência à saúde da população. Então, sigo os passos dela e tenho seu apoio para essa transformação, e do reitor da nossa universidade, o professor Carlos Gilberto Carlotti Junior, que também é professor titular de Neurocirurgia na nossa universidade. Ou seja, somos um trio à frente de uma transformação e vamos fazer o melhor que pudermos para consolidar a disciplina de Emergências Clínicas, utilizando o HC como um modelo de atendimento. Ser — A sra. sofreu preconceitos por ser mulher durante sua trajetória até aqui? Ludhmila — Infelizmente, o preconceito contra a mulher está no DNA de um País como o nosso. Claro que o caminho para mim foi mais difícil, que a minha trajetória teve muito mais obstáculos do que se eu fosse um homem. Isso é natural, infelizmente, em um País que ainda convive com reflexos de uma sociedade que foi escravizada, enfrentando preconceitos e desigualdades. Mas, sem dúvida, sempre conto — e no meu concurso não foi diferente — com minha força de vontade. Cada vez que era mais difícil para mim, eu saia mais forte. Tive de lutar muito para alcançar meus objetivos. Cheguei até aqui e vou chegar mais longe. Vou estar à frente da consolidação da especialidade, do atendimento do paciente crítico, da fusão do conhecimento entre Medicina de Emergência e Terapia Intensiva e, com certeza, abro caminho para outras mulheres. Acredito que, atualmente, somos uma sociedade em transformação, mas, é fato que para a mulher chegar a ser líder é difícil. A porcentagem de mulheres em cargos de liderança é muito menor. Na Fmusp, de 66 professores titulares, apenas 14 são mulheres. Porém, eu diria que nos últimos anos e daqui para frente esse caminho vai ser facilitado. Minha trajetória é um exemplo de que é possível chegar lá. [3] Por meio do livro recém lançado, Emergências Cardiovasculares, Ludhmila defende que "não é preciso ter a melhor estrutura, mas treinar o profissional de saúde" Vamos fazer o melhor que pudermos para consolidar a disciplina de Emergências, utilizando o HC como um modelo de atendimento
S E R M É D I C O • 1 1 [4] ARQUIVO PESSOAL/LUDHMILA HAJJAR [4] O Espaço Imaginário para pacientes e seus familiares, no Incor, foi criado com o empenho de Ludhmila e da cantora Marisa Monte Ser — A sra. tem algum hobby para descontrair após uma rotina que deve ser extenuante? Ainda canta e toca violão? Ludhmila — Minha rotina é uma loucura, de poucas horas de sono e de muito trabalho, mas sou muitíssimo feliz com o que faço. Graças a Deus, dormir pouco para mim não faz diferença e consigo trabalhar de 19 a 20 horas por dia. Tenho dois hobbies: a leitura e a música. Sempre que tenho um tempinho, dou uma escapada para ir a algum show de um artista que eu goste. Acho que issome torna um pouco mais sensível para enxergar no ser humano aquilo que precisa ser visto. Sim, toco violão e canto, mas de um jeito nada profissional, só mesmo para relaxar um pouquinho. Algumas vezes, na terapia intensiva, pego o violão e toco uma ou duas músicas para alegrar meus pacientes naquele momento difícil. Pelo paciente, a gente faz qualquer coisa. Gosto de música popular brasileira (MPB), sou superfã daMarisaMonte, pois suas músicas sempre falam de amor e de transformação. Inclusive, ela é nossa parceira na Fmusp. Sob a liderança dela, criamos o Espaço Imaginário Marisa Monte, no Instituto do Coração (Incor), para aliviar as dores dos nossos pacientes e de seus familiares. É um lugar fantástico destinado à leitura, à música, à arte (inclusive manual), inaugurado cinco dias depois do meu concurso. É uma coisa linda, tudo feito com doação de pacientes. A Marisa e eu fizemos uma dupla para arrecadar as doações, com toda a capilaridade que ela tem, e conseguimos fazer esse espaço maravilhoso, para adultos e crianças, com o apoio da universidade. Ser — Para finalizar, tem mais projetos que a sra. pretende efetivar? Ludhmila — Sim, um deles é o Teleconsultoria em emergências, que deve ser uma parceria entre o HC- -Fmusp e o Ministério da Saúde, e quero desenvolvê-lo agora. Recentemente, eu, a professora Eloísa e o professor Carlotti levamos esse projeto para a ministra da Saúde, Nísia Trindade, e ela o recebeu super bem. O objetivo é termos plantonistas 24 horas para discutir casos com profissionais da saúde de todo o País. À medida que obtivermos recursos proporcionalmente maiores, ampliaremos o raio de ação da cidade de São Paulo para o nosso estado e, depois, para todo o Brasil. Isso pode modificar a vida dos pacientes nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou nos hospitais de atendimento secundário, pois muitas vezes há grande demora de acionamento, incapacidade de transporte ou de vagas. Enquanto isso, uma orientação 24 horas é fundamental para modificar o cenário do atendimento. Além disso, pretendo implementar, com a colaboração de toda a Fmusp, o cuidado ao paciente crítico, com a fusão entre emergências e terapias intensivas. Então, quando digo que é desafiador para mim estar à frente da disciplina de Emergências Clínicas, não é apenas olhar para o entorno do HC, e sim para todas as clínicas extramuros. Tenho certeza de que a gente pode fazer mais. Acredito que grandes universidades como a nossa podem ter um papel que vai além, o de modificar a história da vida das pessoas. Isso é o que mais me motiva.
[1] ILBUSCA/ISTOCK [1] esmo sendo uma especialidade nova no Brasil, a Medicina de Emergência (ME) conta com história e tradição. Já na Primeira Guerra Mundial, médicos militares perceberam que a rapidez e a ordem de atendimento dos soldados feridos impactavam os índices de sobrevivência, entendimento que alicerçou os sistemas de triagem e o conceito de assistência em emergência. Esses métodos foram seguidos no âmbito civil, com a criação de ambulâncias e protocolos pré-hospitalares. Além disso, outra guerra, a do Vietnã, levou à expansão no campo dos transportes aeromédicos, nos anos 1970, quando pilotos D O S S I Ê : M E D I C I N A D E E M E R G Ê N C I A | H I S T Ó R I A dos Estados Unidos voltaram do front com a experiência adquirida. Até a década de 1960, contudo, a prática médica de emergência era incipiente, e os recursos aos profissionais e pacientes, limitados. Há informações de que os primeiros veículos utilizados para transportar pacientes em estado grave (ambulâncias), em geral, eram administrados por donos de funerárias habituados em transportar pessoas na horizontal e executados por funcionários inexperientes. Não havia especialidade acadêmica estabelecida nem um padrão de profissionais nas salas de emergência, que reuniam internos, residentes S E R M É D I C O • 1 2 Hospital Militar dos Estados Unidos na década de 1960 M A ascensão da Medicina de Emergência Concília Ortona Reyes e médicos de qualquer especialidade, sem protocolos, logística ou coordenação do cuidado hospitalar ou pré-hospitalar. Até que um grupo pioneiro de médicos identificou a necessidade de um especialista em emergência para o atendimento nos serviços durante o dia e à noite. Sob liderança de James Mills, em 1961, quatro médicos deixaram seus consultórios particulares na Virgínia, nos Estados Unidos (EUA), para se dedicar à criação e ao desenvolvimento de um departamento de emergência local. Seguindo a mesma tendência, outros 23 colegas passaram a atuar na área de emergência, dessa vez em Pontiac, Michigan,
S E R M É D I C O • 1 3 também nos Estados Unidos. Em agosto de 1968, foi fundado o American College of Emergency Physicians (Acep), com o preceito de que médicos deveriam ser treinados na especialidade. Isso começou com reuniões pequenas ou cursos de um mês em centros médicos acadêmicos, mas tornou evidente que a única maneira de capacitar profissionais seria por programa formal de Residência Médica. Assim, os pioneiros da ME estruturada e sistematizada foramos EUA e Reino Unido, seguidos pelo Canadá e pela Austrália. “O Reino Unido e os EUA foram os precursores da ME como especialidade primária em Medicina, totalmente aprovada pelos seus governos”, conta Ffion Davies, atual presidente da International Federation for Emergency Medicine (Ifem). Segundo ela, que também é médica do University Hospitals of Leicester, no Reino Unido, mais de 70 países contam atualmente com ME, sendo que, entre eles, há os que a adotam como área de atuação, por exemplo, da Medicina Intensiva, Medicina Interna ou Pediatria. Ffion explica que a jornada política em defesa da ME foi muito rápida nesses países, assim como na Nova Zelândia. O processo também está acelerado em países como África do Sul, Singapura, além de RECURSOS EM EMERGÊNCIA O avanço na assistência em emergência — e de uma especialidade na área — dependeu da disponibilização de meios e estratégias para um atendimento mais rápido e efetivo aos pacientes. Ambulâncias Sua história começou na Antiguidade, com a utilização de carrinhos para transportar pacientes. Já em 1487, carruagens com camas especiais foram utilizadas como transporte de emergência, durante o cerco de Málaga, pelos monarcas católicos, contra o Emirado Nacérida de Granada, na região que hoje pertence à Espanha. Tais veículos foram operados até a década de 1830, e os avanços da tecnologia ao longo dos séculos 19 e 20 levaram às modernas ambulâncias. Transporte aeromédico A primeira missão oficial de ambulância aérea foi registrada em 1917, na Turquia, quando uma aeronave britânica transportou um soldado baleado para um hospital em 45 minutos. No entanto, a maioria dos historiadores acredita que, na prática, o transporte médico começou antes, no início da Primeira Guerra Mundial, quando um oficial sérvio foi transportado em um avião do serviço aéreo francês do campo de batalha para o hospital. Depois da guerra, os registros franceses relataram que as ambulâncias aéreas reduziram a taxa de mortalidade de soldados feridos de 60% para 10%. Protocolo de Manchester Uma etapa muito importante desse processo abarca o Protocolo de Manchester, que recebeu esse nome por causa da cidade britânica em que foi criado, a partir de um trabalho colaborativo de médicos e enfermeiros entre 1994 e 1995. Trata-se de um método de triagem de pacientes que os classifica de acordo com a gravidade de seu quadro clínico, fazendo com que aqueles com problemas que representem risco de morte sejam atendidos primeiro. Hong Kong e algumas outras regiões do Oriente Médio, da África subsaariana e da Ásia. Contudo, a percepção de que a especialidade é primordial, bem como seu papel como “porta de entrada”, foi heterogênea entre os países. Em certos contextos, foi a partir da Medicina de Família; em outros, em cirurgia, atendimento pré-hospitalar ou cuidados intensivos. Inicialmente, nos Estados Unidos, a American Medical Association (AMA) relutou em aceitar um programa de residência específico em ME, limitando o curso a um certificado de formação especial. A Residência Médica em ME finalmente foi aprovada em 1970,
D O S S I Ê : M E D I C I N A D E E M E R G Ê N C I A | H I S T Ó R I A 1 4 • S E R M É D I C O ENTRE 1914 E 1918 Na Primeira Guerra Mundial, médicos perceberam que rapidez e triagem salvavam vidas 1968 Fundado o American College of Emergency Physicians (Acep) 1972 A American Medical Association reconhece a Medicina de Emergência como especialidade 1961 Médicos trocam consultórios por departamentos de Emergência nos Estados Unidos 1970 Aprovada a Residência em ME, tendo como primeiro residente Bruce Janiak [2] [3] [5] [4] LINHA DO TEMPO [2] HEIN NOUWENS/ISTOCK [4] OLEG YUNAKOV_WIKIMEDIA COMMONS | FOTOS 3 E 5: DO DOCUMENTÁRIO THE EVOLUTION OF EMERGENCY MEDICINE/WWW.EMRA.ORG com o programa inicial desenvolvido pela University of Cincinnati (EUA), tendo como primeiro residente o médico Bruce Janiak. Tratava-se de um programa muito menos abrangente do que os de hoje, e as barreiras não se concentraram apenas no país de origem. Isso se deu, em parte, devido à crença de que o aprendizado dos conceitos de ME era melhor quando ensinado por profissionais de outras especialidades. Entre 1986 e 1988, foram realizadas as primeiras conferências internacionais sobre Medicina de Emergência, que reuniram médicos da área e nas quais foram lançadas as bases para a criação de uma associação da especialidade. Esses encontros propiciaram a criação da Ifem, instituída oficialmente em 1991 — tendo como países-membros fundadores a Austrália, o Reino Unido, o Canadá e os Estados Unidos. A ME no Brasil provém de um histórico de emergencistas que lutaram pela formação adequada, pelo aperfeiçoamento no padrão de atendimento aos pacientes, além da criação da especialidade e de uma sociedade representativa. A Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), fundada em 2008 (veja matéria da pág. 16 à 19), é um dos membros da Ifem, que representa atualmente mais de 70 sociedades nacionais e regionais em ME. Segundo a presidente da Ifem, é difícil dizer quais são os fatos históricos centrais para a promoção da ME em nível global. “Regiões inteiras do mundo adotaram um ritmo que jamais imaginaríamos 15 anos atrás”, comemora. Em comum, tais marcos correspondem a qualificação especializada de alto nível, sistema de turnos que permite atenção total em departamentos de emergência, equipe de enfermagem de emergência e inclusão de médicos especialistas em decisões sobre percursos dos pacientes em nível político — do pré-hospitalar ao intra-hospitalar. Em maio deste ano um acontecimento histórico sublinhou a importância da ME. A 76ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), da Organização Mundial da Saúde (OMS), enfatizou o papel central dos países na arquitetura global de emergências de saúde, motivada pelas contínuas “emergências humanitárias e de saúde”. Os debates se concentraram no tema, bem como na saúde de mulheres, crianças e adolescentes, ou seja, a quem mais precisa, além da cobertura universal de saúde.
FINAL DA DÉCADA DE 1970 Transportes aeromédicos se expandem nos EUA, com a experiência adquirida na guerra do Vietnã ENTRE 1986 E 1988 Primeiras conferências internacionais de Medicina de Emergência 1991 A International Federation for Emergency Medicine (Ifem) é criada, com quatro países-membros fundadores ENTRE 1994 E 1995 Elaboração do Protocolo de Manchester 2021 Ifem completa 30 anos, reunindo mais de 70 países-membros, incluindo o Brasil 2008 Brasil: criada a Abramede 2023 OMS dedica sua assembleia mundial aos cuidados em emergência S E R M É D I C O • 1 5 [6] [7] [6] MEINZAHN/ISTOCK | FOTOS 7 E 8: WWW.IFEM.CC Fontes Medicina de Emergência: uma nova especialidade médica. Programa de Atualização em Medicina de Emergência (Promede). História da Medicina de Emergência. Revista Brasileira de Medicina de Emergência (Rebrame). História daMedicina de Emergência na USP. São Paulo: Escola de Educação Permanente FMUSP; disponível em: https://eephcfmusp.org.br/portal/online/medicina-de-emergencia-na-usp/ FRASES DE FFION DAVIES SOBRE A ESPECIALIDADE A médica Ffion Davies, presidente da International Federation for Emergency Medicine (Ifem), participou como uma das fontes de informação para a matéria de história da emergência. Compilamos a seguir, algumas frases interessantes da profissional sobre a especialidade: “Médicos de emergência são bons em ressuscitação rápida sem diagnóstico e, para muitos pacientes, não é necessário seguir para a UTI”. “Uma vez que o modelo seja bem-sucedido, há o perigo de que os departamentos de emergência se tornem uma ‘rede de segurança’ do sistema, quando deveriam ser uma ‘rede de segurança’ do paciente”. “Entre as barreiras para a consagração da ME figuram a falta de evidências de que ofereça melhores soluções econômicas e resultados aos atendidos”. “Minha jornada como emergencista começou durante um estágio de três semanas na faculdade. Geralmente, somos médicos que gostam de variedade, de estresse e temos uma natureza social que deseja cuidar de todos os pacientes que, às vezes, estão tendo o pior dia das suas vidas”. [8]
[1] 1 6 • S E R M É D I C O D O S S I Ê : M E D I C I N A D E E M E R G Ê N C I A | PA N O R AM A [1] CHALABALA/ISTOCK Consolidação e reconhecimento da especialidade no Brasil Luiz Alexandre Alegretti Borges* e Frederico Carlos de Sousa Arnaud** O processo de consolidação e reconhecimento da Medicina de Emergência (ME) como especialidade médica no Brasil foi uma jornada perseverante e não sem percalços — o que explica, em parte, a sua oficialização tardia, comparada à de outros países. Alguns eventos, iniciados em meados da década de 1990, foram essenciais para a construção dos pilares que estabeleceram a especialidade no País. Esses acontecimentos, por sua vez, se deram em consequência dos anseios de alguns grupos demédicos em relação à falta de treinamento específico para o atendimento às emergências, e ao esforço em busca de formação adequada e assistência de alto padrão, para fazer frente à elevada letalidade dos pacientes que necessitavam desses cuidados. Em 1996, uma equipe de médicos doHospital Municipal de Pronto-Socorro (HPS), de Porto Alegre (RS), desenvolveu um programa baseado em uma especialização dos Estados Unidos, denominado 1ª Residência Médica de Medicina de Emergência. Essa iniciativa, uma das mais importantes para o reconhecimento da especialidade no País, foi comandada pelos médicos Luiz Alexandre Alegretti Borges (N.R: um dos autores deste artigo) e Hamilton Petry de Souza, diretor do HPS. O curso contou com a orientação, inclusive presencial, de Ross Tannebaum, médico do Cook County Health and Hospitals System, de Chicago.
S E R M É D I C O • 1 7 [2 E 3] FOTO: ARQUIVO DOS AUTORES DA MATÉRIA A Comissão Nacional de Residência Médica do Ministério da Educação (CNRM-MEC) contestou a denominação dessa iniciativa por considerar o termo “residência” exclusivo de seus programas credenciados. Apesar da contestação, o curso de dois anos continuou sendo tratado como “residência” no âmbito local, com bolsas de estudos custeadas pela Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Mesmo informados sobre o não credenciamento do programa pelo MEC, os candidatos se submetiam à seleção e havia uma importante demanda pelo curso no HPS. Devido ao seu preparo, os participantes desse programa eram absorvidos pelo mercado de trabalho antes mesmo de concluírem a formação. O curso de Porto Alegre também colaborou para a formação de médicos que seriam ativos partícipes do movimento da Medicina de Emergência que se difundiria pelo Brasil. Carta de Gramado Em 2002, chegou a ser criada a Sociedade Brasileira de Medicina de Emergência (Sobramede), em Brasília (DF), que, por falta de apoio institucional, acabou encerrando suas atividades. Como já havia um grupo importante de médicos atuantes na área, em 2007, foi realizado o Congresso Brasileiro de Medicina de Emergência de Gramado (RS) — posteriormente chamado de I Congresso —, ocasião em que foi redigida a Carta de Gramado, com propostas que visavam propiciar a criação e consolidação da especialidade, além de resgatar uma agremiação específica. Em 24 de abril de 2008, motivada pelo Congresso de Gramado, foi fundada a Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), em Porto Alegre, para a qual foram eleitos presidente e vice-presidente, respectivamente, Luiz Alexandre Alegretti Borges e Frederico Carlos de Sousa Arnaud (NR: também autor deste artigo). A entidade agrupava, inicialmente, algumas associações regionais de Medicina de Emergência que haviam surgido no País. Em 2004, a Sobramede solicitou o reconhecimento da Medicina de Emergência à Comissão Mista de Especialidades (CME) e, em 2008, a Abramede fez requerimento semelhante à Associação Médica Brasileira (AMB), sendo que ambos os pedidos foram negados. Também em 2008, na cidade de Fortaleza (CE), foi criada a 2ª Residência de Medicina de Emergência do Brasil — e a primeira do Nor- [2] [3] O médico de Chicago (EUA), Ross Tannebaum (2o da esq. para dir.), junto aos alunos do programa do HPS de Porto Alegre Preceptores e alunos do primeiro curso de ME do Hospital de Messejana, na cidade de Fortaleza
1 8 • S E R M É D I C O D O S S I Ê : M E D I C I N A D E E M E R G Ê N C I A | PA N O R AM A Devido ao seu preparo, os participantes do 1o programa de Medicina de Emergência do Brasil eram absorvidos pelo mercado de trabalho antes mesmo de concluírem a formação te e Nordeste — no Hospital de Messejana. Liderado pelo médico Frederico Arnaud, o grupo trouxe o modelo das residências norte- -americana e australiana. A mesma equipe realizaria, em 2009, o II Congresso Brasileiro de Medicina de Emergência, com público considerável e a presença de diversos palestrantes nacionais e internacionais. Sequencialmente foram realizados o III Congresso, em 2011, em São Paulo (SP); o IV, em 2013, em Curitiba (PR); e o V, em 2016, em Porto Alegre. Os eventos trouxeram importantes palestrantes internacionais, desenvolveram cursos de atualização e sediaram apresentações de trabalhos científicos. Em 2018, o VI Congresso foi realizado em Fortaleza, já com todo o entusiasmo do reconhecimento da especialidade, sendo considerado o maior evento da emergência brasileira, com 5 mil participantes. Ações institucionais Algumas ações governamentais e institucionais também impeliram para a normatização da ME como especialidade. Em 1996, o Brasil criou o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) — inspirado no modelo francês —, desenvolvendo os projetos-piloto em Porto Alegre e Ribeirão Preto (SP). Entre 1999 e 2001, o Ministério da Saúde (MS) instituiu o médico regulador e as Centrais de RegulaçãoMédica de Urgências. Em 2002, o MS publicou a Portaria GM/MS n.º 2.048, que até hoje representa uma importante referência para a Medicina de Emergência ao nortear a organização de novos serviços e estabelecer as necessidades de área física, equipamentos e recursos humanos. Em paralelo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução n.º 1.529/1998, com orientações para os serviços de atendimento pré-hospitalar, em relação à qualificação profissional, materiais e aos equipamentos necessários. O Estado de Minas Gerais foi o primeiro a adotar, em 2010, a classificação de risco no atendimento das urgências e emergências pelo Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecida no Protocolo de Manchester (ver matéria da pág. 12 à 15). A iniciativa visava mitigar a superlotação das emergências, com expressivo número de pacientes em situação de saúde não resolvida ou agravada em seus serviços. O Protocolo de Manchester, que estabelece os critérios de gravidade e as prioridades, passou a ser adotado pelo MS e pela maioria das secretarias estaduais de saúde (SES), sendo utilizado tanto em serviços de emergências públicos quanto privados. Em 2011, o MS normatizou a implantação das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) 24 horas, visando melhorar o acesso dos pacientes e desafogar as emergências de grandes hospitais. Entre 2010 e 2012, o CFM realizou três fóruns de Medicina de Emergência — com discussões em torno do reconhecimento da especialidade, entre outros assuntos, reunindo representantes de entidades médicas, escolas de Medicina, hospitais universitários e diversas instituições e entidades ligadas à area. Os fóruns promoveram debates intensos e resultaram em documentos com diversas proposições, entre elas: • Incentivo à formação e fixação do médico emergencista no serviço de emergência; • Incentivo à criação da disciplina Medicina de Emergência em todas as escolas médicas do País; • Reconhecimento da Medicina de Emergência como especialidade médica; • Implantação de um sistema de classificação de risco para todas as emergências.
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