3 6 • S E R M É D I C O C R Ô N I C A ocê vai ver, sua vida vai mudar depois de ser mãe.” Ouvi essa frase inúmeras vezes durante a gestação. Sim, eu sabia que mudaria, que minhas prioridades mudariam, meu sono, minha rotina, meu jeito de ver o mundo. Só não imaginava o quanto essa mudança também viria acompanhada de dor. Era para ser um plantão qualquer, num domingo qualquer… Afinal, eu já estava de plantão desde o dia anterior e a UTI estava um tanto tranquila, nenhum paciente grave. Faz dois meses que retornei ao trabalho após o término da licença-maternidade e a rotina está aos poucos se ajeitando. Ordenho leite antes do plantão, lavo a bombinha e a desinfeto, guardo a bombinha na bolsa, dou um beijo na minha bebê — que está no colo da avó —, saio meio apressada e peço para ela se comportar, que logo a mamãe estará de volta. Chego ao hospital. Do elevador, contemplo o dia que ainda está lindo. O sol está se pondo, e assim vou apreciando essa luz até o último andar, onde fica a UTI pediátrica. A primeira partida após a chegada Por Priscila Rodrigues* “V Do início do corredor já avisto certa movimentação de pessoas, olhares tensos, enfermeiras apressadas. Viro o rosto para o primeiro quarto à esquerda e vejo minha colega à beira do leito, pedindo que iniciem a dobutamina. Só pelo tipo de droga solicitado e pela face da minha colega, percebo que se trata de paciente grave. Ofereço ajuda prontamente, ainda com minhas roupas “normais” e com a bolsa na mão. Minha colega nega a ajuda, pede para eu vestir o uniforme com calma e comer alguma coisa antes. Bom, ela sabia que eu passaria as próximas 12 horas naquele leito, durante meu plantão noturno — as 12 horas mais tristes da minha vida profissional. Retorno ao leito, agora devidamente vestida: tênis, cabelo preso, uniforme verde… e coração apertado, um coração diferente. Já vi inúmeros pacientes muito graves, já dei as piores notícias. Mas agora meu coração é outro, um coração de mãe, e não somente de médica. No leito, me deparo com uma bela menininha de dois anos, intubada, sedada, em choque séptico, necrose das extremidades — um dos piores choques e de evolução mais rápida que já vi. Apresento-me aos pais e, pela primeira vez, posso sentir verdadeiramente a angústia daquela família. Era como se algo maior nos aproximasse. Examino a criança, o tempo todo pensando que poderia ser minha filha. Olho para as mãozinhas cianóticas e penso que, há apenas um dia, aquelas mãozinhas estavam brincando com areia no parquinho. Examino as pupilas e penso que no dia anterior aqueles olhinhos miravam vidrados a mãe ao acordar. Uma tristeza imensa invade meu peito e, ao mesmo tempo, uma vontade avassaladora de regredir aquele quadro, de fazer essa criança melhorar. “Ela vai sair desse choque”, penso a todo momento. Fiquei durante todo o plantão à beira desse leito. Conversei muito com os pais, criei um vínculo, uma
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