S E R M É D I C O • 1 SER MÉD I CO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO Nº 104 • ANO XXVI • 2024 WWW. C R EME S P. O R G . B R TRANSPLANTES E DOAÇÃO DE ÓRGÃOS ENTREVISTA Joe DiMeo, primeiro paciente submetido com sucesso a transplantes de face e de mãos Pág. 6 OPINIÃO Resolução sobre redes sociais e intersecção entre Medicina e Direito Págs. 30 e 32 HOBBY Medicina e charcutaria convivem em harmonia na vida de um cirurgião Pág. 38 GOURMET Grupo de médicos troca receitas culinárias italianas no Whatsapp Pág. 42 Conexão e evolução das técnicas de transplantação; desafios que envolvem a captação de órgãos; ponderações éticas e bioéticas na criação de normativas para a prática; biofabricação de tecidos e órgãos vivos pode mudar paradigmas; e perfusão regional normotérmica: estudos resgatam a Doação após Morte Circulatória (DCD)
S E R M É D I C O • 1 N E S TA E D I Ç Ã O sta edição da revista Ser Médico coloca em destaque a questão vital da doação de órgãos para transplantes, abordando-a sob diversas perspectivas. Apesar da indiscutível importância dessa área da Medicina no salvamento de vidas e o impressionante avanço de suas técnicas nas últimas décadas, a quantidade de órgãos doados não acompanha o ritmo de evolução, resultando em longas filas de espera que, frequentemente, deixam pacientes desassistidos. A seção História traça a evolução das técnicas de transplantes e da cultura de doação de órgãos ao longo do tempo, fornecendo um contexto fundamental para compreender os desafios atuais. Em Panorama, a revista oferece uma análise abrangente do assunto, não apenas destacando os avanços na área médica, mas também explorando novas estratégias para aumentar a disponibilidade de órgãos. Já o artigo de EmFoco mergulha nas complexas questões éticas e bioéticas envolvendo a alocação desses recursos escassos, mas que têm o potencial de mudar o curso de vidas das pessoas e de seus entes queridos. A esperança de que a capacidade de criar tecidos e órgãos vivos por meio da biofaeditorial da Ser Médico, que não se limita apenas à Medicina em si, apresentamos, na editoria Hobby, o fascínio de um cirurgião do aparelho digestivo pela charcutaria, enquanto Gourmet destaca médicos de ascendência italiana que se uniram em um grupo de WhatsApp para compartilhar suas origens culturais e culinárias. Medicina no Mundo oferece notas sobre questões científicas de destaque, enquanto Resenha analisa o filme Ferrari, documentário sobre as várias facetas de Enzo Ferrari, construtor de um império no setor do automobilismo, sua persistência e sua capacidade de superação como empresário, além de suas lutas pessoais. Fotopoesia complementa esta edição, que oferece uma visão instigante e enriquecedora para todos os profissionais da área médica. Boa leitura! Alexandre Kataoka Coordenador da Assessoria de Comunicação bricação mude os paradigmas de sua oferta é apontada na editoria de Vanguarda. O renovado interesse, nos Estados Unidos, pelo método de doação após morte circulatória (DCD, na sigla em inglês) — aprimorado pela perfusão regional normotécnica —, como uma alternativa à tradicional morte encefálica, é abordado em Tecnologia. Já a Entrevista com o norte-americano Joe DiMeo, o primeiro paciente a passar com sucesso por transplantes de face e bilateral de mãos, oferece um vislumbre emocionante do potencial transformador dessas técnicas. A resiliência de DiMeo — que enfrentou mais de 20 cirurgias após um acidente automobilístico — e sua adaptação ao novo rosto é admirável. Na seção Opinião, são apresentados dois artigos. Um deles discute a recente Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que impacta a relação entre a Medicina e as redes sociais. O outro aborda a Primeira Jornada Jurídica do Cremesp e a importância da intersecção entre a Medicina e o Direito, que tem sido cada vez maior, especialmente no contexto da crescente judicialização da saúde. Além disso, seguindo a linha E [1] FOTO: OSMAR BUSTOS [1] ˜ ˜ TRANSPLANTES E DOAÇAO DE ÓRGAOS: AVANÇOS E DESAFIOS DE UMA GRANDE CONQUISTA
2 • S E R M É D I C O Certificado no escopo: Serviços cartoriais relativos à Pessoa Física e Pessoa Jurídica; serviços judicantes realizados na sede do Cremesp, relativos às atividades administrativas para a tramitação de sindicâncias e de processos ético profissionais; manutenção dos dados cadastrais dos médicos; intermediação da isenção de rodízio municipal de veículos; atendimento telefônico e presencial na sede e delegacia da Vila Mariana, referente aos serviços cartoriais. EXPED I ENTE CONSELHEIROS Alexandre Kataoka, Angelo Fernandez, Angelo Vattimo, Antonio Augusto Nunes de Abreu, Chien Yin Lan, Christianne Cardoso Anicet Leite, Ciro Gatti Cirillo, Cristina Prata Amendola, Daniel Kishi, Edson Umeda, Eduardo de Campos Werebe, Eliandre Costa Palermo, Eliane Aboud, Eloisa Ferreira de Almeida Costa, Elzo Garcia Junior, Fabio Sgarbosa, Flavia Amado Bassanezi, Flavia Bellentani Casseb, Irene Abramovich, Joaquim Francisco de Almeida Claro, Jose de Freitas Guimaraes Neto, Krikor Boyaciyan, Marcus de Medeiros Matsushita, Maria Alice Saccani Scardoelli, Maria Aparecida Pedrosa dos Santos, Mario Antonio Martinez Filho, Mario Mosca Neto, Marise Pereira da Silva, Newton Kara Jose Junior, Paulo Cézar Mariani, Paulo Henrique Pires de Aguiar, Pedro Sinkevicius Neto, Regina Maria Marquezini Chammes, Renato Azevedo Júnior, Roberto Rodrigues Junior, Rodrigo Lancelote Alberto, Rodrigo Souto de Carvalho, Rogerio Tuma, Sandro Scarpelini, Silvio Sozinho Pereira, Wagmar Barbosa de Souza e Wilmar Azal Junior. CONSELHO EDITORIAL Alexandre Kataoka, Angelo Vattimo, Christianne Cardoso Anicet Leite, Irene Abramovich, Pedro Sinkevicius Neto e Wagmar Barbosa de Souza SER MÉDICO Coordenador do Departamento de Comunicação: Alexandre Kataoka Chefe da Assessoria de Comunicação: Carolina Marcelino Líder da Assessoria de Comunicação: Júlia Remer Editora: Fátima Barbosa Subeditora: Aglaé Silvestre Colaboradores: Concília Ortona Reyes, Ivolethe Duarte, Nara Damante e Vitor Bastos Fotografia: Osmar Bustos Designer Gráfica: Jade Longo Administrativo: Bruna Carolina Wojtenko e Leonardo Costa Estagiária: Maria Eduarda Oliveira Lima Impressão: Plural Indústria Gráfica Tiragem: 187.000 exemplares. Periodicidade trimestral. Opinião e conceitos emitidos em matérias assinadas não refletem necessariamente a opinião da Ser Médico ISSN: 1677-2431 Imagem da capa: manipulação do afresco "A criação de Adão", que é parte da pintura O Teto da Capela Sistina, de Michelangelo. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO CAT - Central de Atendimento Telefônico: (11) 4349 - 9900. Atendimento na sede: Rua Frei Caneca, 1.282 — Consolação (das 9h às 18h) E-mail: sermedico@cremesp.org.br DIRETORIA Presidente: Angelo Vattimo Vice-presidente: Maria Alice Saccani Scardoelli 1ª Secretária: Irene Abramovich 2º Secretário: Wagmar Barbosa de Souza 1º Tesoureiro: Pedro Sinkevicius Neto 2º Tesoureiro: Daniel Kishi Corregedor: Rodrigo Lancelote Alberto Vice-corregedora: Flavia Amado Bassanezi Assessoria de Comunicação: Alexandre Kataoka Delegacias Metropolitanas: Mario Antonio Martinez Filho Delegacias do Interior: Christianne Cardoso Anicet Leite Departamento de Fiscalização: Roberto Rodrigues Junior Departamento Jurídico: Joaquim Francisco de Almeida Claro
Í ND I CE 6 ENTREVISTA / JOE DIMEO Primeiro paciente submetido, comsucesso, a transplantes de face e demãos conta sua história à revista Ser Médico 4 CARTAS & NOTAS 10 TRANSPLANTES E DOAÇÃO DE ÓRGÃOS / HISTÓRIA Conexão e evolução das técnicas de transplantação de órgãos têm origem na Antiguidade 14 TRANSPLANTES E DOAÇÃO DE ÓRGÃOS / PANORAMA O dilema que envolve um dos maiores êxitos da Medicina e a dificuldade na captação de órgãos 22 TRANSPLANTES E DOAÇÃO DE ÓRGÃOS / VANGUARDA Esperança à vista: biofabricação de tecidos e órgãos vivos pode mudar paradigmas 26 32 34 MEDICINA NO MUNDO Transmissão iatrogênica de Alzheimer, vacina bivalente e eutanásia dupla HOBBY As artes da Medicina e da charcutaria convivem na vida do cirurgião Roberson Moron 38 RESENHA Ferrari, muito além de um documentário 41 GOURMET Médicos compartilham dicas diversas e receitas culinárias italianas em grupo de Whatsapp 42 AGENDA CULTURAL Confira nossas dicas culturais 46 36 CRÔNICA A primeira partida após a chegada 18 TRANSPLANTES E DOAÇÃO DE ÓRGÃOS / EM FOCO Ponderações éticas e bioéticas devem ser adotadas na criação de normas para alocação de órgãos 30 OPINIÃO / RESOLUÇÃO SOBRE PUBLICIDADE MÉDICA Médicos podem ser influenciadores digitais, desde que observada a ética profissional OPINIÃO / MEDICINA E DIREITO Jornada Jurídica do Cremesp aborda a nova regulamentação para publicidade médica, seus principais desafios e implicações jurídicas TRANSPLANTES E DOAÇÃO DE ÓRGÃOS / TECNOLOGIA Perfusão regional normotérmica aprimora doação após morte circulatória FOTOPOESIA Para o meu coração num domingo, de Wislawa Szymborska 48
4 • S E R M É D I C O CARTAS & N O T A S Cartas para: sm@cremesp.org.br ou Rua Frei Caneca, 1.282, Consolação, São Paulo - SP — CEP 01307-002. A Ser Médico reserva-se o direito de publicar trechos das mensagens. Informe o nome completo e número de CRM, se for médico/a. [1] CREMESP PROMOVE 1º SIMPÓSIO DE INTRODUÇÃO À PESQUISA CIENTÍFICA Orientar jovens médicos interessados em iniciar projetos de pesquisa com a utilização de plataformas digitais e capacitálos a submeter artigos em publicações científicas, com análise crítica da literatura, delinearam os principais objetivos do 1º Simpósio de Introdução à Pesquisa — da produção científica à interpretação de artigos para atualização profissional, realizado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), nos dias 16 e 17 de março. O evento científico foi coordenado e apresentado pelo conselheiro do Cremesp Newton Kara José Júnior, professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) e editor-chefe dos Arquivos Brasileiros de Oftalmologia; e pelo médico Paulo Schor, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador adjunto de Inovação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Ambos têm destacada atuação em ensino, pesquisa e inovação. Realizado no auditório da sede do Cremesp, na cidade de São Paulo, o simpósio foi aberto pelo presidente da casa, Angelo Vattimo. “Nenhum outro CRM do País promoveu um curso com essa dimensão. Muitos pensam que os Conselhos são apenas cartoriais. Realmente, eles têm essa função em decorrência da lei, para supervisionar a ética na Medicina. Mas temos ampliado esse escopo para sair das três vertentes — cartorial, fiscal e judicante. Estamos promovendo inúmeras atividades, desde a publicação de uma revista científica, a JMRR, e várias outras publicações, o primeiro congresso do Cremesp, realizado no ano passado, e o segundo, de 24 a 26 de maio de 2024, para o qual convidamos a todos. Queremos que o médico entre no Conselho e se sinta parte dele”, ressaltou. Em sua apresentação, o professor Newton Kara abordou os principais aspectos que envolvem o estudo científico e a análise crítica da literatura, sintetizando a necessidade de pesquisa em três aspectos: o homem é um pesquisador nato — sem isso ainda estaríamos vivendo nas cavernas; no Brasil, embora não haja ferramentas e os investimentos necessários, pode-se começar por pesquisas básicas, que são possíveis; alguns requisitos são necessários: inteligência, raciocínio e conhecimento. Ele destacou ainda a importância das pesquisas científicas para o desenvolvimento de senso crítico-reflexivo, para que os profissionais da Medicina questionem realidades e tornem-se agentes transformadores no ambiente onde atuam. [1] FOTO: OSMAR BUSTOS
S E R M É D I C O • 5 2º CONGRESSO DE MEDICINA DO CREMESP DEBATE O EXERCÍCIO ÉTICO DA PROFISSÃO Com o tema central “A interação entre a ética e a prática médica”, discutido por renomados especialistas das mais variadas áreas, o 2º Congresso de Medicina do Cremesp acontece nos dias 24, 25 e 26 de maio. O evento pretende disseminar informações confiáveis e esclarecer as principais dúvidas dosmédicos sobre importantes temas daMedicina. A edição, organizada pelos conselheiros da atual gestão, aborda sob o ponto de vista da ética, diversas especialidadesmédicas, como Neurologia; Cardiologia; Pediatria; Cirurgia Plástica; Urologia; Psiquiatria; emuitas outras. Além das palestras, são mostrados casos reais de denúncias de má prática recebidas pelo Conselho, que exemplificarão o que deve ser evitado pelo médico para o bom exercício da Medicina. O Congresso também apresenta painéis sobre defesa do Ato Médico; nova resolução de publicidade médica; honorários; pejotização; prerrogativas médicas; residência médica; além de julgamentos simulados com interatividade e outros tópicos essenciais da prática médica. Os espectadores receberão, posteriormente, um certificado do Cremesp pela participação no Congresso. Inscrições limitadas no site http://www.cremesp.org.br/2cmc [2] FOTO: OSMAR BUSTOS [2] ATUALIZAÇÃO PROFISSIONAL Cremesp lança segunda edição do Manual de Melhores Práticas Clínicas na Covid-19 O Cremesp lançou a segunda edição do Manual Melhores Práticas Clínicas na Covid-19 para debater e refletir sobre os avanços e desafios da Medicina. O evento foi realizado no dia 3 de abril, na sede, e com transmissão ao vivo pelo canal oficial do Cremesp no Youtube. O lançamento do manual representou uma oportunidade de promover a disseminação de informações atualizadas e o aprimoramento dos profissionais da saúde e contou com a presença de renomados profissionais da área, convidados e autores do livro. Estiveram presentes Angelo Vattimo, presidente do Conselho; Wagmar Barbosa, organizador da segunda edição e 2º secretário; Ho Yeh Li, médica infectologista que abordou o manejo clínico da covid-19; e Edoardo Vattimo, organizador da primeira edição, que participou do evento por videoconferência. A data de lançamento da segunda edição da obra, atualizada até 2024, faz alusão à primeira live do Cremesp sobre o tema, que foi ao ar há quatro anos, quando o Cremesp esteve na vanguarda na prestação de serviço em relação à covid-19. O Conselho atuou ativamente durante a pandemia de covid-19, promovendo mais de 20 aulas sobre a doença, criou um canal de comunicação para esclarecimento de dúvidas e orientações e realizou fiscalizações que garantiram condições de trabalho adequadas aos médicos e atendimento seguro aos pacientes. De acordo com Barbosa, “após o decreto do fim da pandemia, feito pela OMS em 2023, se fez pertinente a atualização da publicação, fruto de cooperação entre os melhores profissionais da Medicina, que traz conhecimentos ainda mais aprofundados e atualizados para a comunidade médica". JMRR O ex-conselheiro do Cremesp, Edoardo Vattimo, fez uma apresentação por videoconferência sobre o Journal of Medical Resident Research (JMRR) e seu papel de apoio ao desenvolvimento de trabalhos científicos no País. A JMRR é uma publicação bilíngue do Cremesp, produzida nas versões impressa e online. Vattimo, que é editor-chefe da JMRR, explicou que um dos objetivos da publicação é oportunizar o ingresso no universo da pesquisa acadêmica aos jovens médicos, discorrendo sobre o processo de admissão e seleção dos artigos na revista. Medline Complete No segundo dia do simpósio foi ministrada uma aula prática sobre a busca de artigos científicos em bases indexadas dentro da plataforma Medline Complete (do Medical Literature Analysis and Retrieval System Online) — disponibilizada gratuitamente, desde outubro de 2021, aos médicos inscritos no Cremesp.
6 • S E R M É D I C O E N T R E V I S TA oltar a ser capaz de fazer, sozinho, coisas comuns, como se vestir, escovar os dentes ou se pentear, e um dia poder retornar ao trabalho: essas foram as principais motivações para que o estadunidense Joseph DiMeo (ou Joe) entrasse para a história da Medicina, em agosto de 2020, como o primeiro paciente a ser submetido, com sucesso, a um transplante de face e de mãos — outros dois haviam sido tentados, mas não deram certo. Pelos riscos de complicações, a equipe de transplantes de face do New York University (NYU) Langone Center, nos Estados Unidos, liderada pelo cirurgião plástico Eduardo Rodriguez, foi cautelosa e esperou seis meses para divulgar os resultados. Quase quatro anos depois, Joe continua bem e sem sombra de rejeição — temor constante dos transplantados —, e reconhece ser “incrível” ter sobrevivido a queimaduras de terceiro grau em mais de 80% do corpo que o acometeram em 2018, quando seu carro capotou e pegou fogo. Ao acordar do coma, três meses e meio depois, soube dos ferimentos extensos — incluindo pontas dos dedos amputadas, cicatrizes faciais graves e ausência de lábios e pálpebras, que afetaram sua visão, suas atividades diárias e limitaram sua funcionalidade —, e então iniciou a trajetória de mais de 20 cirurgias reparadoras. “A coisa mais difícil foi ser obrigado a voltar para a casa dos meus pais, precisar deles para cuidar de mim. Desde os 18 eu já era super independente”, revela o rapaz, de 24 anos, em entrevista exclusiva à revista Ser Médico. Simpático, diz não ter reclamações quanto à nova aparência. “A pele nova não estava queimada, fiquei é bem feliz”. Aos poucos vem retomando a vida, em companhia de seus cães e da namorada, Jessica, enfermeira que conheceu na internet depois do acidente e que o ajuda em desafios singelos, como montar carros antigos com Lego. Confira a íntegra da entrevista. Transplante de face e de mãos: o lado do paciente V | J O E D I M E O Concília Ortona Reyes
S E R M É D I C O • 7 [1] ARQUIVO PESSOAL/JOE DIMEO [1] Ser Médico – Como é ser o primeiro paciente a receber um transplante conjunto de face e de mãos? Qual foi o caminho até chegar à cirurgia? Joe DiMeo — Sinto que é um grande passo da Ciência, do qual fico orgulhoso de fazer parte, grato por ter sobrevivido. Já havia passado por mais de 20 cirurgias plásticas reconstrutivas, porém chegou a um ponto em que meu médico não poderia fazer mais nada, não havia mais pele saudável, e ligou para o cirurgião plástico Eduardo Rodriguez. Colocaram-me na fila dos transplantes tipo VCA (sigla em inglês para alotransplante composto vascularizado) e fui selecionado pelo fato de as queimaduras terem literalmente derretido minhas pálpebras, o que me impedia de piscar. Com o tempo, ficaria cego. Além disso, minhas pontas dos dedos foram amputadas, e eu não conseguia fazer nada de forma independente. Não queria viver daquele jeito. Fizeram inúmeros exames comigo por seis ou sete meses, para avaliar se meus nervos estavam ainda intactos e o que ainda estava funcionando dentro do meu corpo. Ser — Quais foram as circunstâncias queculminaramnoacidente?Naépoca, quais eramseus planos para o futuro? DiMeo — Aos 20 anos ninguém tem grandes planos para o futuro, estava apenas vivendo o momento. Trabalhava como técnico de laboratório, testando alimentos para verificar taxas de magnésio e potássio e outras substâncias. Às vezes, fazia o período noturno, e isso não me incomodava. Mas, naquele julho de 2018, não estava preparado para ficar sem dormir. Estava fora, fazendo algo commeu pai, quando me ligaram no meio do dia, oferecendo hora extra para o turno da noite, do que eu não me arrependo, porque precisava do dinheiro. Cochilei ao volante quando estava voltando e o meu carro capotou e pegou fogo. Passei três meses e meio em coma e, de repente, acordei. Entre o acidente e o transplante fiz muita fisioterapia, além de exercícios, para manter o peso sob controle, pois o médico avisou que engordar não seria saudável para uma cirurgia desse porte. Ser — Quais foram as principais dificuldades de ordem física, emocional e prática nessa fase? DiMeo — Conversei com outros grandes queimados, todos relataram muita dor. Eu não senti, nem pelas queimaduras, na hora do acidente, nem depois do transplante. Só bastante coceira. Tenho tendência a superar minhas dificuldades, mas apresento algumas, de ordem prática, no dia a dia, como demorar para fazer algumas coisas. Por exemplo, não consigo abrir potes apertados, nem pegar pequenos objetos do chão. Se o meu cartão de crédito cair, será difícil apanhá- -lo. Levei uma semana para montar um Dodge Charger 1969 da Lego, o que uma pessoa normal faria em menos de uma hora. E olha que a minha namorada me ajudou! Joe DiMeo, após receber os transplantes de face e de mãos
8 • S E R M É D I C O Porém, o mais difícil depois do acidente foi ter de voltar para a casa dos meus pais para cuidarem de mim por um tempo, algo de que nunca fui fã, pois desde os 18 anos eu já era muito independente. Nos Estados Unidos há famílias, como a minha, que ensinam desde a infância que você já é adulto quando chega a essa idade. Suas duas opções são ir para a universidade (e pagarão por tudo) ou arranjar um emprego e se virar por conta própria. Ser — Sua concepção em relação aos médicos e à Medicina mudou a partir da sua experiência pessoal? DiMeo — Antes de sofrer esse acidente, não tinha ideia sobre omundo da Medicina, nem sobre transplantes. Algo remotamente semelhante a um transplante de face que vi foi um filme de ação/ficção científica dos anos 1990, chamado Face Off, no qual um agente do FBI (sigla em inglês para Departamento Federal de Investigação) e um terrorista — papéis de John Travolta e Nicolas Cage, respectivamente — passam por cirurgias experimentais para trocarem de rosto e de identidade. Durante o preparo para a cirurgia, fiquei mais informado, graças ao médico Eduardo Rodriguez e à sua equipe (confira o Box). É um cara legal, humilde e que vai direto ao ponto, o que me deixou confiante em fazer a cirurgia com ele. Uma das primeiras coisas que pedi quando o conheci foi as minhas mãos de volta, para que um dia voltasse a trabalhar. Ainda não estou apto a achar um emprego das 9h às 17h, pois a qualquer momento posso ser hospitalizado. Ser — Você buscou informações a respeito do doador? Como descreveria seus sentimentos em relação a ele e sua família? DiMeo — Não soube muito, apenas que era um homem de 48 anos, vitimado por um acidente vascular cerebral (AVC), que faleceu dois dias antes daminha cirurgia. Não apenas doou a mim a face e as mãos, mas também órgãos internos para várias pessoas. Escrevi uma carta aos familiares dele, especialmente sobre como eu me sentiagrato. Nunca responderam, e eu entendo, deve ser difícil perder um ente querido, mas estou aberto a conhecê-los um dia. Depende deles, sem pressão, e compreendo se nunca quiserem conversar comigo. Ser —Como costuma ser a sua rotina? Mora ainda com seus pais? DiMeo — A cada dia a minha rotina é diferente. É legal começar por uma massagem nas mãos, pois não tenho mais dinheiro para fazer fisioterapia, nem psicoterapia, o que ficou bem caro. Não paguei pelo transplante, pois foi experimental, porém tenho que arcar com todo o resto, como remédios, consultas e exames. Sou filho único, não moro mais commeus pais, mas os vejo regularmente. Desde 2023 vivo com minha namorada, Jessica, que conheci pelas redes sociais, e nossos dois Boston Terrier. Gosto de jogar sinuca, cozinhar e dirigir carros, algo que eu recentemente voltei a fazer. Meus sonhos são comprar um bom carro e lançar meu livro sobre como sofri o acidente, a vida de uma pessoa queimada e como estou agora, temas que despertam E N T R E V I S TA | J O E D I M E O DiMeo, aos 20 anos... ...e com seus pais, antes do acidente [3] [2] [2 E 3] ARQUIVO PESSOAL/JOE DIMEO
S E R M É D I C O • 9 curiosidade em minhas postagens no Instagram. Não tenho aquela vocação de escrever o que vem do coração, acabo achando tudo chato, pois é só sobre a minha vida. Ser — Quais foram as implicações do transplante de rosto e de mãos em sua identidade pessoal? DiMeo — Em nenhum momento as operações tiveram objetivos estéticos. Olho para mim e penso mais nisso como uma volta à vida, à rotina, ao trabalho. Sinceramente, minha aparência não traz nenhum impacto negativo em mim: desde que me vista bem, me sinto bem. Sou uma pessoa confiante e não ligo se ficarem olhando. Com 1,80cm de altura e braços queimados à mostra, também acho que olharia. Fiquei é muito feliz ao ter a oportunidade de receber esse novo rosto, que não estava queimado, e tudo bem se o doador tinha o dobro da minha idade. Ser — Percebeu mudanças significativas em sua personalidade a partir dessa fase? DiMeo — Não me acho um cara melhor hoje do que era antes do acidente. Sou o mesmo, com uma pele diferente. Um sujeito simples, com muito mais paciência quando se trata de outras coisas na vida. O conselho sobre aparência que dou para outras pessoas, bem influenciado pela minha mãe, é para não se preocuparem com o que os outros acham, já que sempre terão algo negativo a dizer sobre você. Apenas vivam ao máximo e sejam felizes. [4] PIONEIRO NO TRANSPLANTE DE FACE E DE MÃOS Como em uma orquestra, o cirurgião plástico Eduardo Rodriguez regeu, por 23 horas, uma equipe com mais de 140 pessoas, entre médicos e outros profissionais da saúde, empreitada que resultou no primeiro transplante exitoso de face e de mãos. “Disse ao meu time: ‘todos nós sabemos o que fazer, e vamos ter sucesso’, revelou em entrevista. Proeminente médico de ascendência cubana, Rodriguez coordena o Departamento de Cirurgia Plástica Hansjörg Wyss, do NYU Langone Health, um dos principais centros médicos acadêmicos dos Estados Unidos. Além desse, protagonizou outros transplantes de face, inclusive, o primeiro duplo de face e de um olho em um eletricista acidentado no trabalho, anunciado em 2023. Um dos mais desafiadores, no entanto, foi o que envolveu Joe DiMeo. Além das graves deformidades do paciente, a equipe viu a programação do transplante ser atrapalhada pela eclosão da covid-19, em março de 2020. Durante a avaliação de DiMeo, Rodriguez buscou conhecer as expectativas do candidato, inclusive visitando sua família e comunidade em Clark, Nova Jersey. Parecia perfeito para o transplante, por ser “jovem, saudável, sem histórico prévio de problemas mentais, com uma família apoiadora, e o principal, extremamente motivado a readquirir sua independência”, afirmou o médico. O problema foi achar um doador que oferecesse os menores riscos de rejeição, “uma agulha num palheiro”, pois o sistema imunológico de DiMeo se encontrava comprometido pelas múltiplas transfusões e enxertos de pele. As chances de compatibilidade eram menores do que 6%. Quando o doador finalmente chegou, a equipe comemorou — sem se esquecer do respeito pelo falecido, que recebeu próteses de silicone macio que imitam a pele humana no lugar dos órgãos externos retirados. Fontes do Box: site do NYU Langone Health e entrevista ao Good Morning America. [4] WARREN EISENBERG/ISTOCK Entrada dos ambulatórios do NYU Langone Center
[1] QUADRO DE FRA ANGELICO, 1438-1440/WIKIMEDIA COMMONS [1] conexão e a evolução das técnicas de captação e transplantação de órgãos têm origem na Antiguidade e se estendem até os dias de hoje, com registros históricos e religiosos que revelam uma consciência precoce sobre a possibilidade de substituir partes do corpo humano para tratar doenças e salvar vidas. Nas últimas décadas, houve muitos avanços em técnicas cirúrgicas para remoção e transplante de diversos órgãos. Também foram desenvolvidos medicamentos de imunossupressão e aperfeiçoada a gestão pós-operatória, o que permitiu um aumento consD O S S I Ê : TR AN S P LANT E S E DOAÇÃO D E ÓRGÃOS | H I S T Ó R I A tante da taxa de sucesso dessas cirurgias e a consequente necessidade de busca por órgãos. Mas a Medicina ainda enfrenta importantes desafios que envolvem questões éticas e de cunho científico e social, entre eles o de aumentar a conscientização da população sobre a importância da doação de órgãos, instrumentalizar as equipes médicas, encontrar soluções para a escassez de doadores e melhorar os protocolos em benefício dos pacientes. Descrito em 1275 como “milagre” no livro do arcebispo italiano Jacobus de Voragine, o primeiro transplante de órgãos entre huma1 0 • S E R M É D I C O Quadro “A cura do diácono Justiniano” A Doação de órgãos e evolução dos transplantes salvam vidas Aglaé Silvestre
[2] Imagem de campanha de doação de órgãos promovida pelo ABTO nos retratado teria sido realizado na Roma Antiga, por volta do ano 300 d.C., pelos médicos São Cosme e São Damião. Dois séculos mais tarde, os gêmeos foram canonizados pela Igreja Católica por exercerem a Medicina de forma voluntária e voltada aos mais pobres. O transplante, que diz respeito à amputação de uma perna gangrenada de umdiácono substituída pela de um etíope falecido no dia anterior, foi imortalizado pelos traços do italiano Fra Angelico no quadro A cura do diácono Justiniano (entre 14381440), exposto na Basílica de São Marco, em Florença, Itália. Combase nessa história, o dia 27 de setembro — data em que, pelo sincretismo religioso, se homenageiam São Cosme e São Damião — foi instituído como o Dia Nacional da Doação de Órgãos, pela Lei nº 11.584, de 28 de novembro de 2007. E, em 2014, implantou-se a Campanha Setembro Verde em São Paulo, visando conscientizar a sociedade da importância desse gesto humanitário. DOAÇÃO E TRANSPLANTE O transplante de órgãos humanos passou a ser amplamente pesquisado e aplicado ao longo do século 20. Com o aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas e de imunossupressão, os transplantes se tornaram procedimentos mais rotineiros e sofisticados a partir da década de 1970, fazendo com que a demanda por órgãos superasse significativamente sua oferta. No plano internacional, foi aprovada, em 1984, a Lei Nacional de Transplantes nos Estados Unidos, estabelecendo a base para sistemas de doação de órgãos e tecidos em todo o mundo. O movimento em favor da conscientização e estruturação da doação de órgãos teve como marco a criação, em 1989, da Organização Nacional de Transplantes (ONT) na Espanha, que se transformou em uma referência internacional graças a uma série de medidas organizativas que se consolidaram no que se chamou de Modelo Espanhol de Doação e Transplantes. A abordagem e coordenação eficientes, educação pública e identificação precoce de potenciais doadores permitiram recordes no número de doadores por milhão de população. S E R M É D I C O • 1 1 NO BRASIL Com a evolução dos transplantes no país, em 1986 é fundada a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), em São Paulo, entidade médica que estimula o desenvolvimento das atividades relacionadas a transplantes de órgãos. Na década seguinte, em 1997, a Lei nº 9.434 — conhecida como Lei dos Transplantes — regulamentou a doação de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou depois da morte, para transplantes e tratamentos. Instituiu-se também o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e as Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos e Tecidos (CNCDO), responsáveis pelo controle e monitoramento desse processo no país. Pelo art. 4º da lei, todos os brasileiros passariam a ser doadores automáticos, a menos que expressassem vontade contrária na carteira de identidade ou de motorista. Após manifestações da sociedade civil, o artigo foi substituído pela Lei nº 10.211, de 2001, na qual a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica passou a depender da autorização do cônjuge ou parente (maior de idade), obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau e firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes na verificação da morte. A polêmica da doação presumida voltou à discussão no país mais recentemente, após a notícia, amplamente divulgada pela mídia, da urgência na obtenção de um doador [2] SITE ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS | HTTPS://SITE.ABTO.ORG.BR/
D O S S I Ê : TR AN S P LANT E S E DOAÇÃO D E ÓRGÃOS | H I S T Ó R I A 1 2 • S E R M É D I C O SÉCULO 15 Obra A cura do diácono Justiniano, exposta na Basílica de São Marco, em Florença, simboliza o primeiro transplante de órgãos em humanos, em 300 d.C. 1967 Equipe do sul-africano Christiaan Barnard realiza com sucesso o primeiro transplante do coração no mundo, na Cidade do Cabo. 1954 O estadunidense Joseph Murray faz o primeiro transplante de rim com sobrevida prolongada do paciente. 1968 Equipes comandadas por Euryclides de Jesus Zerbini e Luiz Venere Décourt realizam o primeiro transplante de coração no país, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). [3] [4] [6] [5] LINHA DO TEMPO [3] QUADRO DE FRA ANGELICO, 1438-1440/WIKIMEDIA COMMONS [4] RSNHOPE.ORG [5] ERIC KOCH PARA ANEFO - ARQUIVO NACIONAL/WIKIMEDIA COMMONS [6] REPRODUÇÃO DA FOLHA DE S.PAULO para a realização de um transplante de coração no apresentador de televisão Fausto Silva. Há um movimento na sociedade em defesa da aprovação do Projeto de Lei nº 1.774, de 2023 — que tramita na Câmara dos Deputados e altera a Lei nº 9.434 —, visando instituir novamente a doação presumida de órgãos, salvo manifestação de vontade em contrário por meio de registro em documento público de identidade. A Lei dos Transplantes também estabeleceu que a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, mediante a utilização de critérios definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM). Em 2000, foram estabelecidas normas para o funcionamento e o cadastramento de bancos responsáveis pela retirada, processamento e conservação de órgãos e tecidos para fins de transplantes, além de ter sido criada a Central Nacional de Transplantes (CNT), que articula o trabalho das unidades e provê os meios para as transferências de órgãos entre os estados, contemplando as situações de urgência e evitando desperdícios de órgãos que não podem ser aproveitados em seu local de origem. A CNT emite uma lista de receptores inscritos, que devem ser compatíveis com o doador. A fila funciona por ordem cronológica de cadastro. O que define as priorizações é a necessidade médica de cada paciente e o tipo sanguíneo, entre outras condições técnicas. Em parceria com as secretarias estaduais de Saúde, em 2009 foram implantadas as Centrais Estaduais de Transplante (CNCDO) e criadas as Organizações de Procura de Órgãos (OPO), que atuam em conjunto, além de Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) para articulação dos processos de doação de órgãos e tecidos. Mais recentemente, em 2023, foi sancionada a lei que cria a Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e ao Transplante de Órgãos e Tecidos (Lei nº 14.722/2023), que entrou em vigor em fevereiro de 2024. Entre as medidas previstas na nova lei está a realização de campanhas de divulgação e conscientização por estados, municípios e o Distrito Federal, com atividades educativas nas escolas, e a capacitação de gestores e profissio-
S E R M É D I C O • 1 3 1989 Fundação da Organização Nacional de Transplantes (ONT), na Espanha. 1997 Promulgação no Brasil da Lei dos Transplantes e criação do Sistema Nacional de Transplantes e das Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos e Tecidos. 2009 Implantação das Centrais Estaduais de Transplante e das Organizações de Procura de Órgãos. 2024 Médico brasileiro Leonardo Riella comanda o 1O xenotransplante de rim de um porco para um paciente vivo. 2023 Sancionada a Lei nº 14.722, que cria a Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e ao Transplante de Órgãos e Tecidos. [7] [8] [9] EVOLUÇÃO DOS TRANSPLANTES nais da Saúde e da Educação. A intenção é contribuir para o aumento do número de doadores e promover a discussão e o esclarecimento científico sobre o tema. De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil registrou mais de 1,9 mil doadores efetivos de órgãos de janeiro a junho de 2023, marcando um recorde em comparação com o mesmo período nos últimos dez anos. Isso possibilitou a realização de mais de 4,3 mil transplantes, de acordo com dados do SNT. um transplante do coração; e o também estadunidense Thomas Starzl, que realizou, em 1967, o primeiro transplante de fígado com sobrevida prolongada do paciente, nos Estados Unidos —, houve uma forte expansão no número de cirurgias realizadas no mundo todo, com aumento de sobrevida dos pacientes, graças à evolução das técnicas e à descoberta de medicamentos imunossupressores. PIONEIRISMO BRASILEIRO Os primeiros transplantes feitos no país foram os de rins em 1964, no Hospital dos Servidores do Rio de Janeiro, e em 1965, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Em 1968, o país se tornou pioneiro na América Latina ao realizar o primeiro transplante do coração no HCFMUSP, com as equipes lideradas por Euryclides de Jesus Zerbini e Luiz Venere Décourt. No mesmo ano, a equipe de Marcel Cerqueira Cesar Machado realizou o primeiro transplante de fígado no País, também no HCFMUSP. Em 1985, os transplantes foram retomados no hospital, e, sob a coordenação de Silvano Raia, foi realizado o primeiro transplante de fígado intervivos do mundo, em 1988. Em 2016, as equipes de Luiz Augusto Carneiro D’Albuquerque e Edmund Baracat realizaram, no HCFMUSP, o primeiro transplante de útero bem-sucedido da América Latina e o terceiro do mundo. Em março de 2024 foi realizado o primeiro xenotransplante de rim de um porco, geneticamente modificado, para paciente vivo, comandado pelo médico brasileiro Leonardo Riella, nos EUA. Desde os procedimentos iniciais realizados por médicos pioneiros — como o estadunidense Joseph Murray, que, em 1954, foi responsável pelo primeiro transplante de rim bem-sucedido; o sul-africano Christiaan Barnard, que, em 1967, obteve o primeiro resultado significativo em [7] ORGANIZAÇÃO NACIONAL DE TRANSPLANTES DA ESPANHA [8] FAC-SÍMILE DA LEI QUE CRIOU O SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTES: HTTPS://CENTRAL3. TO.GOV.BR/ARQUIVO/385281/ [9] SITE MASSACHUSSETS GENERAL HOSPITAL. ACESSO EM HTTPS://WWW.MASSGENERAL.ORG/DOCTORS/20903/LEONARDO-RIELLA
[1] 1 4 • S E R M É D I C O D O S S I Ê : TR AN S P LANT E S E DOAÇÃO D E ÓRGÃOS | PA N O R AM A [1] LISA-BLUE/ISTOCK Valter Duro Garcia*, José Osmar Medina de Abreu Pestana** e Paulo Manuel Pêgo-Fernandes*** Odesenvolvimento dos transplantes e sua aplicação na substituição de alguns órgãos é um dos capítulos de maior êxito na história da Medicina. Em aproximadamente seis décadas, o transplante evoluiu de um procedimento com pouco sucesso em enfermos com doença renal para uma intervenção terapêutica eficaz em pacientes com doenças terminais em vários órgãos. A característica principal desse procedimento, que representa sua magia e também sua dificuldade, é a necessidade de utilização do órgão de um doador vivo ou falecido. Magia porque o órgão de uma pessoa que faleceu ou de um ente querido pode salvar ou melhorar a qualidade de vida de pessoas gravemente enfermas, e dificuldade porque o número de doadores é insuficiente para atender à crescente demanda de pacientes em lista de espera. Com exceção de 15% a 20% dos transplantes renais, de 10%, de fígado, principalmente em crianças, e de poucos casos de pulmão, em que são utilizados doadores vivos, no Brasil os órgãos são obtidos de doadores falecidos por morte encefálica1. Ainda não são utilizados no País doadores falecidos por morte circulatória2. Os transplantes de órgãos no Brasil tiveram início na década de 1960 e foram se estruturando entre os anos Evolução dos transplantes: um dos maiores êxitos de Medicina do País Rim, para transplante
S E R M É D I C O • 1 5 1970 e 1990, mas somente com a vigência da Lei no 9.434, a partir de 1998, foi instituída uma política de transplante baseada em medidas para quatro áreas: legislação, organização, financiamento e educação3. Entre as medidas legais, destacam-se a mudança da forma de consentimento para doação — de informado para presumido forte —, a qual não foi utilizada, pois após um mês, com a publicação do Decreto nº 2.170 em março de 1997, passou-se a utilizar a decisão obrigatória, exigindo que todos os adultos expressassem sua escolha de ser “doador” ou “não doador” ao fazer ou renovar os documentos de identidade ou de motorista. Por ter sido rejeitada pela população e entidades médicas — e fracassado, pois 52% das pessoas se manifestaram como não doadoras3 —, em março de 2001 foi restabelecido o “consentimento informado”. O mérito dessa lei é que foram colocadas as medidas fundamentais para a instalação de uma política de transplante no decreto que a regulamentou. Também foram estabelecidas as listas de espera estaduais para alocação de órgãos e tecidos, com critérios éticos e transparentes. Nesse momento em que há um projeto de lei tramitando na Câmara de Deputados para a utilização do “consentimento presumido”, é mais adequado manter o “consentimento informado”, com a criação do registro de doadores. O consentimento informado respeita todos os preceitos éticos e mantém a confiança da sociedade no programa de transplante, que, embora seja sólido, deve ser aprimorado. Uma observação importante que deve ser salientada é que, com a legislação de consentimento informado, alguns estados (como Santa Catarina e Paraná) têm obtido taxas de doações superiores a 40 por milhão de população (pmp), ficando entre as mais elevadas do mundo, enquanto outros têm taxas inferiores a 10 pmp1,4, demonstrando que o fator decisivo para o aumento da doação e do transplante não é a forma de consentimento utilizada. Há outros obstáculos importantes que devem ser enfrentados, como a não identificação dos potenciais doadores, a falta de logística para avaliação dos doadores e para remoção dos órgãos, e ainda o pequeno aproveitamento dos órgãos removidos. Portanto, o aprimoramento com medidas organizacionais, logísticas e educacionais é mais eficaz que a mudança na forma de consentimento, evitando a desconfiança da população e conflitos com familiares4. Foi empregado um modelo organizacional baseado no padrão espanhol, com a criação de organizações em três níveis: nacional (Sistema Nacional de Transplante), estadual (Centrais Estaduais de Transplante) e hospitalar, através dos coordenadores de transplante encarregados da procura de doadores em cada hospital3. Em 2009, foram acrescentadas nesse modelo as organizações de procura de órgãos (OPOs), que já existiam em alguns estados, mas foram normatizadas e financiadas pelo governo federal. Em agosto de 1998, com a Portaria no 3.409, foi estabelecido um Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC) com recursos para o financiamento dos transplantes, fora do teto financeiro dos estados. Com os valores desse fundo, foram ressarcidos a procura de doadores, a remoção de órgãos e tecidos, os transplantes, o acompanhamento pós- -transplante e a medicação imunossupressora3. É interessante observar que o gasto do governo com imunossupressões caiu em torno de 70% com a utilização de genéricos, se comparados os valores de 2000-2005 com aqueles a partir de 20155. Entre as medidas educacionais se destacaram os cursos de formação de coordenadores hospitalares de transplante, os encontros com intensivistas e os encontros regionais com equipes de Em seis décadas, o transplante evoluiu de um procedimento com pouco sucesso para uma intervenção terapêutica eficaz em pacientes terminais
1 6 • S E R M É D I C O D O S S I Ê : TR AN S P LANT E S E DOAÇÃO D E ÓRGÃOS | PA N O R AM A transplante e centrais estaduais de transplante, promovidos pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT), pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e pelas Centrais Estaduais de Transplantes. Foram criadas algumas organizações não governamentais (ONGs) nas áreas de doação e transplante e se instituiu essa disciplina em poucas faculdades de Medicina. Também houve várias campanhas de doação e a criação do Dia Nacional do Doador de Órgãos em 27 de setembro, no dia de São Cosme e Damião, padroeiros do transplante. A importância da instalação dessa política de transplante pode ser avaliada comparando as taxas de doação e de transplante obtidas em 1998 com as de 2023, publicadas no Registro Brasileiro de Transplantes. Nesses 25 anos, a taxa de doadores passou de 3,1 pmp para 19,9 pmp (6,4x); a de transplante renal com doador falecido, de 6,4 pmp para 25,5 pmp (4x); a de transplante hepático, de 2 pmp para 11,2 pmp (5,6x); e a de transplante cardíaco, de 0,4 pmp para 2,1 pmp (5,3x). As taxas de transplante de pulmão e pâncreas, que eram inferiores a 0,1 pmp, passaram para 0,4 pmp e 0,6 pmp, respectivamente. Observa-se que o crescimento das taxas de transplante foi menor que o das taxas de doação, revelando uma queda no aproveitamento dos órgãos doados. Entretanto, esse grande aumento nas taxas de transplante nesse período foi insuficiente e ficou distante do necessário para atender a demanda por transplante, conforme apresentado na Tabela 1. Novas medidas devem ser tomadas para aumentar o número de transplantes nos próximos anos, devendo se basear no tripé procura de doadores, aproveitamento dos órgãos e ingresso em lista de espera. Portanto, essas medidas devem buscar: – Aumentar a procura de doadores – Detecção de potenciais doadores; – Autorização familiar. – Melhorar o aproveitamento dos órgãos – Melhorar condições do doador e dos órgãos; – Usar órgãos limítrofes; – Disponibilizar os órgãos não utilizados no estado. – Pôr em lista de espera todos os pacientes com indicação de transplante O aumento da taxa de doadores em morte encefálica (ME) é possível devido à elevada taxa de ME estimada no Brasil, em torno de 100 a 110 pmp1,2. Essa é muito superior à taxa de países desenvolvidos (20 a 50 pmp), que necessitam usar doadores em morte circulatória. Também a elevada taxa de não autorização familiar pode ser revertida mediante o acolhimento dos familiares, o treinamento dos entrevistadores e uma melhor percepção da sociedade sobre a doação, por meio de campanhas nacionais e notícias positivas e impactantes na mídia sobre o tema, por exemplo, de pessoas famosas que se tornaram doadoras ou ingressaram em lista para transplante. Entretanto, o aumento no número de doações e transplantes nesses casos é passageiro, durando em torno de um a dois meses. É provável que os efeitos da lei promulgada nesse ano sobre a política nacional de conscientização e incentivo à doação e ao transplante6 sejam eficazes e duradouros, pois devem fornecer, além de motivação, informação e conhecimento. Outro aspecto muito importante é o treinamento e a motivação de intensivistas e emergencistas, fundamentais nesse processo Tabela 1. Necessidade anual de transplantes e taxa de transplantes realizados em 2023. Transplante Rim Fígado Coração Pulmão Pâncreas 95 30 8 8 4 19.290 6.092 1.625 1.625 812 6.035 2.365 424 78 117 31% 39% 26% 4,8% 14,4% Necessidade estimada (pmp) (n) (n) (%) Tx realizados
S E R M É D I C O • 1 7 pois detectam os potenciais doadores, realizam a manutenção e iniciam o protocolo de determinação de ME. Não há estudos conclusivos sobre a taxa ideal de aproveitamento, mas com base em resultados obtidos por alguns países, poderia ser: 85%para rim; 80%para fígado; 45% para coração; e 25% para pulmão e pâncreas. Na Figura 1, estão apresentadas as taxas de aproveitamento obtidas em 2022, as projetadas para 2028 e as consideradas ideais. Utilizando essa abordagem, em 2023 projetamos os números pmp para 2028. Com 30 doadores, poderemos realizar 50 transplantes renais, 20 hepáticos, 5 cardíacos, 2 de pâncreas e 2 de pulmão, beneficiando um número crescente de pacientes que aguardam uma nova oportunidade de vida. As medidas preconizadas para aumentar o aproveitamento dos órgãos são: melhorar as condições do doador através de manutenção adequada com emprego de diretrizes; liberalização dos critérios de aceitação de órgãos em relação à idade e ao tempo de isquemia fria; resultado da biópsia e presença de comorbidades; e melhora das condições dos órgãos com máquinas de perfusão. Finalmente, o ingresso em lista de espera em 2023 foi menor que o esperado, tendo sido de 73,6 pmp para o transplante renal (78%) e de 16,8 pmp (56%) para o fígado. Para os demais órgãos, o ingresso foi ainda menor: de 2,8 pmp (35%) para o coração, de 0,9 pmp (22,5%) para o pâncreas e de somente 0,6 pmp (7,5%) para o pulmão, refletindo o pequeno número de equipes de transplante deste órgão. O ingresso em lista de espera de todos os pacientes que necessitem de transplante é fundamental para garantir a equidade do sistema. Referências 1. Registro Brasileiro de Transplante. São Paulo: ABTO. Vol. 24, No. 3, Jan-Set 2023. 2. Garcia VD, Pestana JOMA, Pêgo-Fernandes PM. Is donation after circulatory death necessary in Brazil? If so, When? J Bras Pneumol. 2022;48(2):e20220050. Doi: 10.36416/1806-3756/e20220050 3. Garcia VD, Campos HH, Jota de Paula F, Panajotopoulos N, Pestana JOMA. Proposta de uma política de transplantes para o Brasil. In: Garcia VD, organizador. Por uma política de transplantes no Brasil. São Paulo: Office; 2000. p. 109-62. 4. Garcia VD; Pestana JOM; Pêgo-Fernandes PM. Organ donation consent after death. Sao Paulo Med J. 2023;142(2):e20241422. https://doi.org/10.1590/15163180.2024.1422.120324 5. Garcia VD, Keitel E, Abbud Filho M. Avaliação econômica do transplante renal no Brasil. In: Silva GB Jr, Oliveira JGR, Barros E, Martins CTB. A Nefrologia e o Sistema de Saúde do Brasil. São Paulo: Livraria Balieiro; 2019. p. 175-200. 6. Brasil. Lei nº 14.722, de 8 de novembro de 2023. Institui a Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e ao Transplante de Órgãos e Tecidos. Diário Oficial da União. 2023;1:1. *MD, PhD. Diretor do Departamento de Transplante de Rim e de Pâncreas da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (RS) e Doutor em Nefrologia pela Universidade de São Paulo (SP). **MD, PhD. Professor titular da disciplina de Nefrologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor superintendente do Hospital do Rim, São Paulo (SP).***MD, PhD. Vice-Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e professor titular do Departamento de Cardiopneumologia da FMUSP, São Paulo (SP). Figura 1. Taxas de aproveitamento dos órgãos obtidas em 2022, projetadas para 2028 e consideradas ideais (porcentagem). 2022 Meta 2028 Ideal Taxa de aproveitamento: Rim 65 73 85 80 64 10 16 45 3,5 3 6,7 6,7 25 25 55 Fígado Coração Pâncreas Pulmão 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0
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