Os conselhos de medicina criticam a abertura
de novas faculdades
Criado há dois anos, o Programa Mais Médicos voltou a ser motivo de uma ferina disputa entre o governo federal e as entidades da área de saúde. Agora, não é mais a atuação dos cubanos o foco da ira dos profissionais brasileiros, e sim a expansão dos cursos de medicina no País. No início de julho, os ministérios da Saúde e da Educação autorizaram instituições privadas a oferecer 2.290 vagas de graduação em 36 municípios do interior. Por outro edital, foram selecionadas mais 22 cidades para abrigar novas escolas no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, regiões vistas como prioritárias, por possuir maior déficit de profissionais.
A reação não tardou. O Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Escolas Médicas decidiram criar um modelo próprio de avaliação dos cursos da área, independente daquele adotado pelo governo. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo prometeu ingressar na Justiça contra a abertura dos novos cursos. As entidades acusam o governo de promover uma expansão indiscriminada das faculdades de medicina, em locais com infraestrutura inadequada, o que colocaria em risco a qualidade da formação.
Por trás da iniciativa do governo, há a tentativa de corrigir uma histórica defasagem. O Brasil possui 1,8 médicos por mil habitantes, índice bem inferior àquele de nações desenvolvidas, a exemplo do Reino Unido (2,7) e da França (3,5), e até mesmo de vizinhos sul-americanos, como Uruguai (3,7) e Argentina (3,2), segundo os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde, de 2012. O problema é agravado pelas disparidades regionais. Enquanto Acre, Amapá, Maranhão, Pará e Piauí possuem menos de um médico por mil habitantes, São Paulo e Rio de Janeiro ostentam padrões europeus, com índices de 2,49 e 3,44, respectivamente.
Atualmente com 18,2 mil profissionais inscritos no programa, o Mais Médicos alcança 4.058 cidades e 34 distritos indígenas e beneficia 63 milhões de brasileiros, informa o governo. Não há mais cidades sem ao menos um médico para atender a população. Há dois anos, eram 700. Mas o provimento emergencial está longe de ser uma solução definitiva. Para reduzir a dependência de médicos estrangeiros, que hoje representam 70% da força de trabalho no programa, o governo decidiu criar 11.447 novas vagas em cursos de medicina até 2017, das quais 5,3 mil já foram autorizadas. Com isso, o Ministério da Saúde planeja alcançar, em 2026, o atual patamar do Reino Unido, que possui o segundo maior sistema de saúde público de caráter universal, atrás apenas do Brasil.
Além dos cursos de graduação, também serão criadas 12,2 mil vagas de residência até 2018, para estimular a fixação dos profissionais no local dos estudos. Segundo o ministro Arthur Chioro, deu-se prioridade a cidades interioranas com mais de 70 mil habitantes, que não possuem faculdades de medicina e apresentam uma relação médico/paciente inferior à meta traçada para 2026. “Antes, era a instituição de ensino que tomava a iniciativa de abrir o curso e definia onde iria atuar. Se preenchesse todos os requisitos legais, recebia a autorização.” Agora, emenda, a iniciativa parte do governo, que leva em conta a demanda social. “Fizemos um levantamento em todas as 436 regiões de saúde para identificar os locais que mais precisavam”.
Para o presidente do CFM, Carlos Vital, trata-se de uma “interferência autoritária nos processos de ensino e formação médica”, incapaz de resolver a crise da assistência à Saúde. “A persistência desses equívocos resultará em danos irreparáveis à sociedade.” Ele ressalta que, das 256 escolas médicas autorizadas a funcionar, 130 foram abertas desde 2003, a maioria delas gerenciada por grandes conglomerados de ensino privado. “É preciso ter condições materiais e humanas para abrir uma escola”, emenda Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp. Mesmo sem os novos cursos, a qualidade da formação médica é preocupante, alerta. Dos recém-formados em São Paulo, 55% não obtiveram nota mínima no exame aplicado pela entidade em 2014. Entre os egressos de estabelecimentos particulares, a reprovação alcança dois terços. “Estamos falando de médicos que não sabem lidar com uma pneumonia ou um infarto.”
No caso dos novos cursos, alertam as entidades, boa parte dos municípios selecionados não cumpre os requisitos mínimos para abrigar um curso de medicina, segundo a portaria 13/2013 do Ministério da Educação. Campo Mourão, no Paraná, não teria, por exemplo, o número mínimo de cinco leitos do SUS por aluno. Outras cidades não possuem programas de residência, entre elas a paulista Rio Claro. E muitas ainda não dispõem de um hospital de ensino.
Marta Abramo, secretária de Regulação e Supervisão do Ensino Superior do MEC, sustenta que as associações médicas lançaram mão de uma interpretação distorcida das regras. Segundo ela, o edital permite parcerias com municípios vizinhos da mesma região de saúde para atingir a quantidade de leitos necessária. Além disso, essas cidades foram selecionadas exatamente por não possuírem faculdades, daí a inexistência de “hospitais de ensino”. Na verdade, essa certificação só pode ser pleiteada por centros médicos que abrigam estudantes de graduação. O ministério considerou a existência de hospitais com potencial para atuar dessa forma. Quanto aos programas de residência médica, há um compromisso assumido pelos municípios para abrir as vagas de forma progressiva. Todas estariam disponíveis antes de a primeira turma se formar. “Não houve flexibilidade, os municípios cumprem rigorosamente os requisitos e foram visitados in loco por nossa equipe”, diz Abramo. O ministro Chioro ressalta que 254 cidades se inscreveram no edital e 153 apresentaram proposta. “Apenas 39 foram selecionadas, exatamente por cumprir os requisitos de qualidade.”
No espinhoso debate, até mesmo a necessidade de abrir novas faculdades é contestada por parte da comunidade médica. “Com os atuais 23 mil ingressantes em cursos de medicina, o Brasil chegará a 2,6 médicos por mil habitantes entre 2021 e 2030.0 problema é que esse número continuaria em expansão, podendo ultrapassar a marca de 4,4 médicos por mil habitantes nos anos 2050”, diz Milton de Arruda Martins, professor de Clínica Médica da USP e ex-secretário de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde. A projeção consta em um estudo coordenado por Martins em 2012, e considera que os formados vão exercer a profissão, em média, por 45 anos. “Não é preciso abrir mais nenhuma vaga. Se expandir mais teremos uma situação insustentável no futuro.”
Vinícius Ximenes, diretor de Desenvolvimento da Educação em Saúde do MEC, recorre a outros estudos de demografia médica, desenvolvidos pela UFMG e pela Fiocruz, para atestar o contrário: sem a ampliação das vagas, o Brasil teria forte escassez de médicos nas próximas décadas, sobretudo com o envelhecimento da população. “Na verdade, estamos bem atrasados. Em 2011, o Reino Unido tinha 1,5 vagas em curso de medicina para cada grupo de 10 mil habitantes. O Brasil tinha 0,8, quase a metade. E os britânicos também estão ampliando a oferta.”
Por ora, a população parece estar satisfeita com o reforço dos estrangeiros nas unidades de saúde. Entre novembro e dezembro de 2014, pesquisadores da UFMG consultaram 14 mil pacientes beneficiados pelo Mais Médicos em 669 municípios. Para 85% dos entrevistados, a qualidade do atendimento está melhor. Nas respostas espontâneas, 41% elogiaram o aumento do número de consultas e 35% avaliaram que os médicos estão mais atenciosos. Ao contrário das tenebrosas previsões iniciais, os cubanos parecem ter caído no gosto popular.
Texto originalmente publicado na Revista Carta Capital
- edição impressa - de 09/03/2015 (Sessão Seu País)
Tags: jalecos brancos, escolas, cursos, Mais Médicos, formação, acadêmicos, abertura.
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